segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

PRÁTICA DO DZOGCHEN NA VIDA COTIDIANA

PRÁTICA DO DZOGCHEN NA VIDA COTIDIANA
Dilgo Kyentse Rinpoche
 
A prática cotidiana do dzogchen consiste em cultivar simplesmente uma plena aceitação sem preocupação e uma abertura ante todas as circunstâncias. Devemos compreender que a abertura é o campo onde jogam todas as emoções e relacionarmo-nos com o próximo sem artificialidade, manipulação nem estratégias. Devemos experimentar tudo completamente, sem tentar nos esconder dentro de nós mesmos como a marmota em sua toca. Esta prática libera uma energia tremenda que geralmente se encontra em potencial, por que tentamos manter pontos de referencia fixos. Os pontos de referência são processos que utilizamos para nos afastar das experiências diretas na vida cotidiana. A princípio tentarmos permanecer presentes neste momento pode provocar certo temor, porém se dermos acolhida a sensação de temor com plena abertura atravessaremos esse obstáculos criados por nossos condicionamentos emocionais habituais. Quando chegarmos ao fim da nossa prática do descobrimento do espaço, devemos experimentar um sentimento de plena abertura para com todo o universo. Devemos abrir-nos com absoluta simplicidade e desnudes mental, esta é a comum e poderosa prática, embora comum de deixar cair a nossa máscara de auto-proteção. Na meditação não devemos estabelecer mediação nenhuma entre a perfeição e o campo de perfeição. Não devemos parecer-nos como um gato que persegue um rato. Devemos compreender que o objetivo da meditação não é submergirmos profundamente em nosso interior, nem retirarmo-nos do mundo, a prática é livre e sem conceitos, sem introspecção nem concentração. O vasto espaço sem origem da luminosa sabedoria espontânea é a base do ser, o princípio e o final da confusão. A presença da sabedoria no estado primordial carece de predileção pela iluminação ou a não iluminação. A base do  ser também conhecida como a mente pura original é a fonte da qual emergem todos os fenômenos, também recebe o nome de grande mãe, já que é a matriz potencial onde todas as coisas aparecem e se dissolvem em sua perfeição natural e espontaneidade absoluta. Todos os fenômenos são completamente claros e lúcidos. O universo é abertura sem obstrução, todas as coisas são interpenetradas. Para ver todas as coisas em sua desnudes ou claridade e sem obscurecimentos, não há nada para alcançar ou a realizar. A natureza dos fenômenos aparece naturalmente e se acha espontaneamente presente na consciência que transcende o tempo. Tudo é naturalmente perfeito tal como é, todos os fenômenos emergem de maneira única como parte de um processo em continua transformação. Esse processo vibra pleno de sentido e significado a cada instante, porém não podemos nos apegar a seu significado, além do momento que se apresenta, esta é a dança dos cinco elementos, onde a matéria é um símbolo de energia, a energia um símbolo da vacuidade, e nós mesmos um símbolo da nossa própria iluminação. Sem necessidade de esforço nem de prática em absoluto, a liberação ou iluminação já está conosco. A prática de dzogchen é a própria vida cotidiana, como não existe um estado inferior não há necessidade alguma de comportar-se de um modo especial e nem de alcançar nada acima ou mais além do que já somos realmente. Não devemos cultivar nenhum sentimento de esforço para lograr alguma meta extraordinária ou estado superior. Esforçar-se por alcançar esse estado é uma neurose que só nos condiciona mais, e obstrui o livre fluxo da mente. Também devemos evitar pensar em nós mesmos como pessoas carentes de valor, pois nossa verdadeira natureza é naturalmente livre e não condicionada, estamos intrinsecamente iluminados e conseqüentemente não carecemos de nada. Quando abordamos a prática de meditação devemos fazê-lo de modo natural, como comer, respirar ou defecar. Não temos que convertê-la em um acontecimento especial ou formal, cheio de seriedade e solenidade, devemos compreender que a meditação está além do esforço, da prática, dos objetivos, das metas e da dualidade entre liberação e não liberação. Nossa meditação é sempre perfeita, não há necessidade alguma de corrigir nada, pois tudo o que surge é o jogo da mente, não existe a meditação incorreta, nem necessidade alguma de julgar os pensamentos como bons ou maus respectivamente, portanto devemos sentar-nos simplesmente, permanecendo simplesmente em nosso próprio lugar e em nossa própria condição tal como ela é sem pensar que estamos meditando. Em nossa prática não deve haver esforço de tensão, de qualquer tentativa de controle ou manipulação para tentar que seja mais aprazível, se descobrimos que estamos alterando-nos do modo antes descrito simplesmente deixamos de meditar e descançamos um pouco, logo recomeçamos nossa meditação. Se tivermos experiências interessantes durante a meditação ou depois dela devemos evitar converte-las em algo especial, perder o tempo pensando nessa espécie de experiências é uma mera distração e um modo infalível de perder a naturalidade, essas experiências são apenas sinais da prática e devem ser consideradas como eventos passageiros, não devemos tentar repeti-las porque isso só serve para distorcer a espontaneidade natural da mente. Todos os fenômenos são atemporais e completamente novos ou frescos, absolutamente únicos e completamente livres dos conceitos de passado, presente e futuro. O contínuo fluxo de novas descobertas, revelações e inspirações que emergem a cada momento é a manifestação de nossa própria claridade. Devemos aprender a ver a nossa vida cotidiana como um mandala ou como um ornamento luminoso das experiências que irradiam espontaneamente da natureza vazia de nosso ser. Os elementos que formam o nosso mandala são os objetos cotidianos de nossa experiência movendo-se na dança ou jogo do universo graças a esse simbolismo o mestre interior revela o significado profundo e último do ser. Portanto, devemos ser naturais e espontâneos aceitando tudo e aprendendo com tudo, isso nos permitirá perceber o lado irônico e divertido de muitos acontecimentos que geralmente nos irritam. A meditação nos permite ver através da ilusão do passado do presente e do futuro, assim a nossa experiência se torna a continuidade do momento. O passado somente é uma recordação pouco fiável sustentado no presente, o futuro é somente uma projeção das nossas concepções presentes, o presente mesmo se desvanece, tão logo tentamos segurá-lo, então porque molestar-nos em tratar de dar consistência à ilusão. Devemos liberar-nos de nossas lembranças e de todos os julgamentos prévios sobre o que é a meditação. Cada instante da meditação é completamente único e pleno de potencialidade e nesse momento não podemos julgar nossa meditação em termos de experiência passada, nem certas teorias ou retóricas vazias, a mera imersão na meditação no momento presente, com todo o nosso ser, livres de dúvidas, aborrecimentos e explicações, é a iluminação.   
 
Tradução – Flávio C. Cardoso                
 

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