segunda-feira, 8 de abril de 2013

LAM RIM - 2

CAPÍTULO 2

O MESTRE


No passado, infinitos Budas apareceram e nós não tivemos a sorte de encontrá-los. O Buda Shakyamuni veio para cuidar dos seres sensíveis desta época degenerada. Ele apareceu neste mundo há 2.500 anos e logo mostrou a muitos seres sensíveis o caminho para a libertação do ciclo do sofrimento. Entretanto, nós não tivemos a sorte de conhecê-lo e aproveitar sua orientação e, assim, fomos deixados com mentes indômitas e comuns. Houve muitos grandes mestres na Índia e no Tibet que alcançaram o estado de total iluminação. Muitos outros grandes mestres alcançaram elevadas compreensões, enquanto outros apenas conseguiram entrar no caminho.
Os ensinamentos tem sido apresentados há muitos séculos, mas o importante sobre a presença do Dharma não é a sua continuidade através dos tempos, e sim se está ou não presente em nossas próprias mentes, se está vivo em nossas ações. Se ficamos satisfeitos simplesmente porque o ensinamento do Buda ainda existe no mundo, então há o perigo da sua deterioração, porque ninguém será capaz de falar partindo da experiência da prática. Após o falecimento do Décimo Terceiro Dalai Lama, em 1933, os tibetanos se isolaram. Apesar da grande transformação que está acontecendo em outras partes do mundo, os tibetanos se confinam e ficam abertos às invasões dos chineses. O Budismo tibetano está vulnerável à degeneração desde a dispersão dos tibetanos. Por isso, neste momento, é realmente muito importante o empenho na prática do Dharma. Em tais momentos críticos, é o mestre espiritual que nos protege e nos apóia. E o guru que nos apresenta os vastos e profundos ensinamentos expostos pelo próprio Buda em uma maneira adequada ao nosso entendimento.
Embora todos os Budas estejam ativamente empenhados em trabalhar pelo beneficio dos outros seres sensíveis, se seremos ou não capazes de aproveitar tais benefícios depende de como nos relacionamos com o nosso mestre espiritual. O mestre espiritual é a única porta para a iluminação, porque ele é o mestre vivo com o qual podemos nos relacionar diretamente. Conhecer um mestre espiritual não é suficiente, se não seguirmos os conselhos dados a respeito da prática e de como conduzirmos as nossas vidas. Se temos a boa sorte de encontrarmos estes ensinamentos, isso significa que estamos livres dos principais obstáculos à prática do Dharma. Portanto, é importante tornarmos significativa a parte remanescente de nossas vidas através do empenho na prática espiritual. Se tomamos a iniciativa agora, a probabilidade é de que seremos capazes de progredir ao longo do caminho.
A prática de qualquer caminho deve se basear em instruções abrangentes e autênticas. Devemos considerar cuidadosamente que tipo de prática gostaríamos de empreender e em que tipo de ensinamentos queremos basear a nossa prática. O grande erudito tibetano SakyaPandita (1182-1251) costumava dizer que as pessoas tomam muito cuidado com questões mundanas como comprar um cavalo. Então, quando você está escolhendo praticar o Dharma, é importante ser ainda mais seletivo com relação à prática e ao mestre, porque o objetivo é a Fraternidade Búdica e não o veículo. Se o mestre é ou não autêntico independe da capacidade de citar textos budistas. Você deve analisar as suas palavras e as suas ações. Através da íntima análise constante, você será capaz de desenvolver uma profunda admiração por aquela pessoa.
O mestre tibetano Po-to-wa (1031-1106) dizia que o ponto inicial de todo o caminho é aprender a se aconselhar com um mestre espiritual e que a mais insignificante experiência de compreensão e a mais insignificante diminuição da ilusão chegam como conseqüência dos ensinamentos de um mestre espiritual. Se nós não conseguimos administrar os nossos assuntos sem a orientação de um bom advogado, não há dúvidas sobre a importância de um mestre espiritual se vamos seguir o caminho desconhecido para a Fraternidade Búdica.
Existem casos de pessoas com grande inteligência, que parecem ser brilhantes, mas que, no momento em que direcionam a sua atenção para o Dharma, as suas mentes se tornam entorpecidas. Isso indica que elas não acumularam potencial positivo suficiente. Também há casos de pessoas que são muito inteligentes e que têm grande conhecimento do Dharma, mas este conhecimento não afeta as suas mentes.
Elas não põem em prática o que sabem. Neste contexto, o mestre espiritual é muito importante. A compreensão elevada só pode ser obtida especialmente através da orientação de um mestre espiritual que tenha uma experiência autêntica. O mestre se torna um modelo e uma fonte de inspiração para a nossa prática. É possível desenvolver uma forte convicção lendo textos relacionados à prática da compaixão, mas quando encontramos uma pessoa viva que tem praticado e que pode nos ensinar a prática da compaixão por sua própria experiência, isto nos inspira mais poderosamente.
Tsong-kha-pa diz que, a menos que a mente do mestre esteja domada, não há esperança de que consiga domar a das outras pessoas. Os mestres devem ser contidos em sua conduta; as suas mentes precisam estar protegidas contra as distrações pelo poder da concentração. Devem estar equipadas com a faculdade da sabedoria, penetrando a aparência dos fenômenos. Se a pessoa possui um treinamento superior na disciplina ética, diz-se que a sua mente está domada. No Pratimoksha Sutra, o sutra que trata dos votos monásticos, a mente é comparada a um cavalo selvagem e a prática da ética é comparada às rédeas com as quais este cavalo selvagem é domado. Portanto, quando a mente indômita se afasta do caminho e se entrega às ações negativas, esse cavalo selvagem precisa ser domado usando a rédea da ética, restringindo o corpo e a mente das ações negativas.
Um mestre qualificado também precisa estar habilitado no treinamento superior da concentração evidenciado pela aplicação constante da atenção e da introspecção. Aqueles que viveram recentemente no Tibet ganharam grande experiência na aplicação da atenção e da introspecção, porque até
mesmo a mais insignificante expressão física de discordância enraivece o regime chinês. Eles precisam estar constantemente atentos e alertas ao fato de estarem transgredindo alguma regra. Um mestre também precisa estar completamente pacificado pelo treinamento superior na sabedoria de compreender a ilusória natureza dos fenômenos.
Tsong-kha-pa diz que uma pessoa ter a sua mente domada apenas não é suficiente; a pessoa também precisa ter conhecimento dos ensinamentos. O lama Drom-ton-pa (1005-1064) costumava dizer que, quando um grande mestre fala sobre um tópico específico, deve ser capaz de relacioná-lo com todo o cânone do caminho para a Fraternidade Búdica. Os mestres devem ser capazes de transformar a sua compreensão de um tópico inteiro em uma instrução que seja benéfica e fácil de aplicar. Como dizem as escrituras, os Budas não podem lavar as ações negativas das outras pessoas, não podem remover os sofrimentos delas e nem podem transferir as suas compreensões para nós. Somente mostrando o caminho certo para nós seguirmos é que os Budas podem libertar os seres sensíveis.
O próprio objetivo de ensinar outras pessoas é ajudá-las a compreender. Conseqüentemente, é importante ter um estilo de falar atraente, fazer o que for necessário para tornar o assunto bem claro. A motivação para ensinar deve ser pura
nunca ser proveniente de um desejo de fama ou de ganho material. Se o dinheiro for a motivação, então o ensinamento torna-se simplesmente uma atividade mundana. Antes da vinda dos chineses em 1951, algumas pessoas em Lhasa liam textos ou cantavam canções para juntar dinheiro. Isso ainda acontece no Tibet. Os turistas se reúnem em torno e tiram fotografias. Acho isso muito triste, porque o Dharma está sendo usado como um instrumento para a mendicância e não para o progresso espiritual.
Po-to-wa dizia que, embora tivesse dado muitos ensinamentos, nunca tinha aceitado mentalmente nem sequer o mais insignificante elogio, porque estava ensinando movido por sua compaixão pelos outros seres sensíveis. Ele considerava que ensinar era uma responsabilidade sua, porque o seu objetivo principal era ajudar outras pessoas. Não há nenhuma razão para fazer os outros se sentirem em dívida ou para aceitar os seus agradecimentos, porque o que você realmente está fazendo é cumprindo o seu próprio voto. Quando você come a sua própria comida, não há nenhuma razão para agradecer a si mesmo, porque comer é algo que você precisa fazer.
Tsong-kha-pa diz que os mestres espirituais que servem como guias no caminho para a iluminação são como a fundação ou a raiz da sua realização de iluminação. Conseqüentemente, aqueles que buscam um mestre espiritual devem estar familiarizados com as qualificações necessárias e determinar se o mestre tem aquelas qualificações. No mundo, sem um líder apropriado, não podemos melhorar a nossa sociedade. Do mesmo modo, a menos que o mestre espiritual seja apropriadamente qualificado, apesar da sua forte fé, segui-lo poderia ser prejudicial, se você for conduzido na direção errada. Por isso, antes de realmente tomar alguém como um mestre espiritual, é importante examiná-lo, perguntar a outras pessoas sobre aquela pessoa e analisá-la você mesmo. Quando você achar que uma pessoa é adequada para ser um mestre espiritual, só então deve começar a considerá-la como tal. Da mesma maneira, antes do mestre espiritual aceitar alguém como um discípulo, é muito importante que, primeiro, preencha completamente as qualificações de um mestre espiritual.

Só porque um lama tem alguns assistentes ou criados não o qualifica como um mestre espiritual. Existe uma diferença entre ser um mestre espiritual e ser um tulku, a reencarnação de um mestre em particular que tem retornado por gerações. Existem alguns que são as duas coisas; alguns são tulkus mas não são lamas e alguns são lamas mas não são tulkus. Na comunidade tibetana, os tulkus ocupam uma posição elevada. Se eles não têm também as qualidades de um mestre espiritual, então é simplesmente uma posição social. Na sociedade tibetana, e mesmo no Ocidente onde muitos lamas foram para ensinar, quando alguém é chamado de tulku, as pessoas imediatamente olham para ele. Porém, outros que realmente são praticantes sérios, não atraem tanto respeito simplesmente porque não têm o rótulo de tulku. O maior filósofo budista da Índia, Nagarjuna, é considerado um mestre por todos os praticantes posteriores, embora ele tivesse um nome simples e nós não tenhamos nenhum registro de que ele tenha tido um séqüito ou um secretário particular. Os nossos lamas tibetanos têm nomes longos e pomposos, alguns dos quais são difíceis de pronunciar. Na verdade, não há nenhuma necessidade de ter outro título além do de bhikshu (monge), que foi dado pelo próprio Buda. Estes são alguns dos grandes equívocos da sociedade tibetana. Nós, tibetanos, não prestamos atenção aos mantos monásticos amarelos dados realmente pelo próprio Buda, mas, ao contrário, prestamos mais atenção aos trajes que são dados como uma marca de classe social para fazer a pessoa parecer ilustre. Os mestres indianos mais recentes usavam uma espécie de chapéu avermelhado e, no Tibet, os seus seguidores davam mais atenção ao chapéu vermelho do que ao que era verdadeiramente importante.
A importância de encontrar um mestre digno de confiança deve ser enfatizada muitas vezes. Penso que a própria situação do Tibet demonstra a insensatez do fato de não ser cético em relação a um líder. Sob o pretexto de serem patrocinadores e benfeitores, os chineses estabeleceram uma intima relação com o Tibet. Nós não percebemos que a China fazia isso para retratar o Tibet como uma província do seu próprio país e que, finalmente, usaria esse argumento para justificar a invasão. Se não administrarmos os nossos assuntos, tanto espirituais quanto sociais, de uma maneira responsável, inevitavelmente iremos nos arrepender mais tarde.
O grande monge Geshe Sang-pu-wa (século XII) tinha muitos mestres espirituais. Certa vez, quando estava viajando de volta do Tibet oriental, ele encontrou um discípulo leigo dando ensinamentos. Geshe Sang-pu-wa foi escutar. Quando os seus assistentes perguntaram por que ele precisava obter ensinamentos de um leigo, Geshe Sang-pu-wa respondeu que havia escutado dois pontos de vista que foram muito úteis. Devido ao fato de Geshe Sang-pu-wa ser capaz de desenvolver admiração e confiança em muitas pessoas, para ele não era um problema ter muitos mestres. Pessoas como nós, cujas mentes ainda não estão domadas, têm tendência de verem falhas no seu mestre espiritual e estão propensas a perderem a fé facilmente. Já que vemos falhas no mestre espiritual e já que estamos propensos a perdermos a fé como resultado de vermos falhas superficiais ou projetadas, é melhor termos menos mestres espirituais mas nos relacionarmos bem com eles. Se você não tem esse problema, está livre para ter tantos mestres quantos forem possíveis.
Quando você vê o mestre espiritual como a personificação de todos os Budas e se refugia nele, esta fé é baseada na admiração.
Quando você cultiva a confiança percebendo o guru como o alicerce e a raiz do seu desenvolvimento, esta fé é baseada na convicção. Quando você desenvolve fé no mestre espiritual seguindo as palavras dele, isto é chamado de fé desejante. De um modo geral, a fé é considerada a raiz ou o alicerce de todos os pensamentos virtuosos. Quando você é capaz de ver o seu mestre espiritual como igual ao próprio Buda, você será capaz de parar de ver as falhas do seu mestre e perceberá apenas as suas grandes qualidades. Porém, a fé deve estar baseada na experiência testada e aprovada, conseqüentemente, você deve, constante e deliberadamente, tentar evitar o tipo de percepção que o conduz a ver falhas no mestre espiritual, as quais, na verdade, podem ser suas próprias projeções, e tentar ver as grandes qualidades do mestre espiritual. Diz-se que, embora o seu mestre espiritual, na realidade, possa não ser um verdadeiro Buda, se você o vê como tal, então irá obter inspiração como se ele fosse um verdadeiro Buda. Por outro lado, mesmo que na realidade o seu mestre espiritual possa ser um perfeito Buda, se você não for capaz de vê-lo dessa maneira, irá receber a inspiração de um ser humano comum.
Nos dias de hoje, nesta era da degeneração os gurus agem em nome de todos os Budas e bodhisattvas com o objetivo de libertar todos os seres sensíveis do ciclo do sofrimento. Em muitos tantras está profetizado que, na era da degeneração, o Buda irá aparecer no mundo sob a forma de gurus e que a compaixão deles deve agir de uma maneira mais vigorosa, que pode parecer confusa para aqueles que esperam que a compaixão assuma uma determinada forma. Se não formos receptivos ao ensinamento e à compaixão do Buda, então nenhum mestre pode nos ajudar muito. Porém, a fé e a convicção irão nos abrir para o poder dos Budas, cuja forte compaixão é direcionada a todos os seres sensíveis sem exceção. Isso inclui você e eu.
Um ensinamento diz: “Enquanto eu estava vagando no ciclo da existência, você (o Buda) procurou por mim e iluminou a minha ignorância. Você me mostrou a luz e me livrou da servidão.” Através de um processo de eliminação, podemos encontrar o Buda que está trabalhando por nós. Pergunte a si mesmo quem, entre aquelas pessoas que lhe são íntimas, o está conduzindo para fora do ciclo do sofrimento causado pela ignorância, pelo apego e pelo rancor. É um dos seus pais? Dos seus amigos? O seu marido ou a sua esposa? Os seus amigos não são, os seus pais e os seus parentes também não. Então, se há um Buda trabalhando por você, deve ser a pessoa em sua vida que o conduz para a iluminação — o seu mestre. É por isso que a pessoa pode ver o mestre como um perfeito Buda. No passado, houve casos nos quais, devido a uma obstrução mental, os praticantes viam o verdadeiro Buda sob uma forma comum. Asanga (século IV) teve tido uma visão do Buda do futuro, Maitreya, como um cachorro sarnento, e Sang-pu-wa viu uma mulher Buda como uma velha leprosa. Se tivéssemos conhecido os grandes mestres do passado que alcançaram a iluminação em uma única vida, eles pareceriam ser apenas mendigos indianos comuns que vagavam nus com linhas pintadas em suas testas.
Quando falo da importância da devoção ao mestre e de percebê-lo como o Buda, por favor não interprete mal, considerando que eu estou dizendo que sou um Buda. Não é este o caso; eu sei que não sou um Buda. Quer seja exaltado ou condenado, ainda serei o monge budista comum que eu sou. Sou um monge e acho isto muito confortável. As pessoas me chamam de Bodhisattva da Compaixão, Avalokíteshvara, mas isto
não me torna Avalokiteshvara. Os chineses me chamam de um lobo usando um manto amarelo, mas isso não me torna menos do que um ser humano ou mais do que um lobo. Permaneço apenas um monge comum.
O que você deve fazer se o fato de seguir as instruções do seu mestre faz com que você aja imoralmente ou se os ensinamentos dele contradizem os ensinamentos budistas? Você deve se manter fiel ao que é virtuoso e deixar o que não está de acordo com o Dharma. Na Índia, houve um mestre com muitos discípulos que dizia a eles para saírem e roubarem. O mestre era um membro da casta brâmane e era muito pobre. Ele falou aos discípulos que, quando os brâmanes ficam pobres, têm o direito de roubar. Dizia que, como favoritos do deus Brahma, o criador do mundo, para um brâmane o ato de roubar não seria pouco virtuoso. Os discípulos já estavam para sair em sua expedição para roubar, quando o brâmane percebeu que um estudante permanecia em silêncio com sua cabeça inclinada. O brâmane lhe perguntou por que não se mexia. O estudante disse: “O que você nos aconselhou a fazermos agora vai contra o Dharma, portanto, não acho que possa fazê-lo.” Isto agradou ao brâmane que falou: “Eu testei o conhecimento de vocês. Embora todos vocês tenham sido meus pupilos e sejam leais a mim, a diferença entre vocês está no seu julgamento. Este rapaz é muito leal a mim, mas, quando eu aconselhei uma coisa errada, ele foi capaz de reconhecer que isso ia contra o Dharma e que não poderia fazê-lo. Isso está certo. Sou o mestre de vocês, mas vocês devem examinar o meu conselho e, sempre que for contra o Dharma, não devem segui-lo.”