segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O CORTADOR DE DIAMANTE


O CORTADOR DE DIAMANTE
(Diamond-cutter)
Trad. Helena Mello



Tulku Pema Wangyal Rinpoché


(Na foto: Dudjom Rinpoche)



ÍNDICE
Preâmbulo
I) - PRIMEIRA PARTE: Preparação para a prática
1.1 - A motivação
1.2 - Postura e respiração
1.3 - As três sílabas adamantinas e as luzes
1.3 - Reflexão sobre quatro temas
II) - SEGUNDA PARTE: Práticas de base
2.1 - O mantra dos budas
2.2 - O mantra da sabedoria suprema
2.3 - O sofrimento e a oração
2.4 - Tonglèn, trocar a felicidade pelo sofrimento
III) - TERCEIRA PARTE: As práticas preliminares
3.1 - O refúgio, antídoto do orgulho
3.2 - A bodhicitta, antídoto da inveja
3.3 - A prática de Vajrasattva, antídoto da aversão
3.4 - A oferta do mandala, antídoto do apego
3.5 - O yoga do mestre, antídoto da ignorância
3.6 - As virtudes do mantra do Mestre de Diamante
3.7 - A transferência da consciência
Conclusão

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Diamantes de Sabedoria de Péma Wangyal



Nota dos tradutores [franceses]



O texto que se segue é a tradução de ensinamentos dados em 1989 em Langoat e em Montpellier por Péma Wangyal Rinpoche, perante um auditório que compreendia tanto pessoas recentemente interessadas pela via traçada por Buda como pessoas mais familiarizadas com os seus ensinamentos. É por isso que o livro contém uma série de práticas que vão desde os primeiros passos na via espiritual até às práticas preliminares que servem de porta de entrada às técnicas avançadas do budismo tântrico tibetano.
Rinpoche apoiou-se num curto texto de Dudjom Rinpoche, o Dudjom Tersar Ngeundro (Os Preliminares do Novo Tesouro), para dar uma explicação simples mas profunda destas práticas. Se a maior parte dos temas abordados junta aquilo que foi detalhado em O Caminho da Grande Perfeição de Patrul Rinpoche, a abordagem é todavia diferente. Patrul Rinpoche escreveu no século passado, dirigindo-se aos Tibetanos impregnados de budismo desde há trinta e cinco gerações. Para chegar a um público de Europeus, criados num mundo agitado, intelectual e com frequência superficial, Péma Wangyal Rinpoche fala o mais possível para além do contexto cultural, guardando portanto intacta toda a seiva dos ensinamentos desta tradição mais do que milenar.
Nós desejámos pôr este texto à disposição daqueles que escutaram os ensinamentos e que quiseram refrescar a sua memória, e também de todos os que se interessam por esta via. Esperamos que este livro, mais do que um manual, se torne para eles num infatigável companheiro de viagem - Nota dos tradutores à qual se seguem os agradecimentos.


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Os exercícios espirituais expostos neste livro não são simples lucubrações mentais, inventadas de fresca data e lançadas a título experimental. Transmitidos de mestre a discípulo desde há mais de dois mil e quinhentos anos, estes métodos foram sempre benéficos àqueles que os puseram em prática. Eu mesmo recebi-os dos meus três mestres principais, Kangyour Rinpoche, Dudjom Rinpoche e Khyentse Rinpoche. Foi ao pé deles que estudei e pratiquei desde a minha tenra infância.
Os meus mestres aconselharam-me com frequência a manter a liberdade de não aderir cegamente àquilo que me apresentavam. Assim, sempre preferi ficar céptico e observar. Só quando estou intimamente convencido do valor dum ensinamento é que o adopto. Aquilo que partilho convosco nestas páginas baseia-se na experiência vivida e não sobre o jogo do intelecto. Espero que desejem vós mesmos fazer a prova pela experiência - Pema Wangyal.

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PRIMEIRA PARTE
PREPARAÇÃO PARA A PRÁTICA
1.1 - A MOTIVAÇÃO
Quando nos sentamos para começar uma sessão de prática e examinamos o nosso espírito, por vezes surpreendemo-nos por descobrir que ele está espontaneamente positivo. Noutros momentos achamos por bem agir, já que a disposição interior não é verdadeiramente positiva. Acontece ainda que o espírito pode dispersar-se num estado nem positivo nem negativo. A deixá-lo vaguear à sorte, não surtirão efeitos nem positivos nem negativos, só perdemos tempo e energia.
Observar regularmente o seu espírito para registar a sua orientação é um hábito a adquirir, mesmo fora de toda a prática espiritual. Obteremos assim, pouco a pouco, uma abertura autêntica, permitindo ter uma atitude construtiva em todas as circunstâncias. Uma tal disposição revela-se preciosa na vida quotidiana. Ao contrário, um espírito negativo faz nascer tensões que acabam por perturbar a comunicação, seja em família ou na vida profissional e social.
Tudo está estreitamente ligado à perspectiva que escolhemos adoptar. Com um estado de espírito positivo, podemos transformar todas as suas actividades. Mesmo as tarefas fastidiosas tornam-se interessantes, e as tensões interiores que elas ocasionavam antes desaparecem...
No princípio, é preferível sentarmo-nos para habituarmo-nos a tomar consciência da inclinação do nosso espírito. Quando despejamos água lamacenta num recipiente, é preciso deixar decantar para que ela reencontre a sua limpidez. Estando alguns instantes tranquilos e sem tensões, vemos melhor em nós mesmos. Com tempo, essa faculdade torna-se natural. Consciente sem demora do que se passa no espírito, não nos deixamos mais ser assaltados por sentimentos negativos ou por sonhos inúteis que não se realizam nunca.
É preciso um ambiente especial para fazermos acalmar o nosso espírito e observar a sua atitude? Todos nós sabemos que é muito difícil encontrar um lugar solitário e sagrado. Na realidade, a casa, o escritório ou o carro são também lugares propícios. Onde quer que estejamos, o importante é consagrar alguns minutos a este exercício. Tiraremos proveito dos mais pequenos instantes. A calma irá estabelecer-se gradualmente, para tornar-se habitual, depois natural. O exame da motivação faz-se então de maneira espontânea, mesmo em plena actividade, o que é precioso se temos intenção de pisar terrenos férteis em conflitos como o trabalho e a família; aí onde outrora o espírito teria sido solicitado em várias direcções, será mais fácil ficar calmo e construtivo.

1.2 - POSTURA E RESPIRAÇÃO
Para funcionar, o espírito apoia-se nas energias mais ou menos perceptíveis que circulam nos canais físicos ou subtis, consoante o caso. No Tibete, nós comparamos a energia a um cavalo selvagem e cego montado por um cavaleiro inteligente mas deficiente... Uma postura correcta mantém os canais direitos e permite que a energia circule livremente e sem choques. Expulsar o ar viciado e desfazer os bloqueios alojados nos canais grosseiros e subtis purifica o corpo e o espírito, que reencontram assim um equilíbrio harmonioso.



A postura em sete pontos
A utilidade desta postura é extensamente explicada nos textos sobre os diferentes yogas. Mas sucintamente, o objectivo é permitir aos elementos subtis nos diferentes centros do corpo que recuperem o seu equilíbrio.
(1) As pernas estão na posição de lótus ou de vajra (cruzadas uma sobre a outra) ou na posição dita do bodhisattva (cruzadas uma à frente de outra).
(2) a coluna vertebral é mantida direita como uma flecha.
(3) os ombros estão puxados para trás, «como as asas dum abutre».
(4) as palmas das mãos estão postas sobre os joelhos; ou ainda, a mão direita repousa dentro da mão esquerda ao nível do umbigo, as palmas das mãos viradas para cima com a extremidade dos polegares em contacto;
(5) a língua, nem enrolada nem crispada, repousa confortavelmente contra o palato;
(6) os olhos podem estar abertos ou fechados. No caso presente, deixamo-los numa posição perfeitamente natural, nem fechados, nem encarquilhados;
(7) a cabeça não deve pender nem para trás nem para a frente: o pescoço deve estar direito e o queixo ligeiramente para dentro, de forma a manter a coluna direita.

Cada ponto desta postura tem a sua importância. Por exemplo, pousar as palmas das mãos sobre os joelhos, ou pousá-las uma sobre a outra ao nível do umbigo, equilibra as energias físicas e estabiliza o espírito. Com efeito, cada um dos principais centros do corpo, ou chakras, está relacionado com um dos cinco elementos: a água, o fogo, a terra, o vento e o espaço (que chamamos por vezes de metal ou madeira). É suficiente tocar em vários sítios do corpo para nos apercebermos de que certas zonas são mais quentes que outras. Isso indica que as energias se parecem consigo mesmas em pontos particulares do corpo.

Expulsar o ar viciado
No exercício que se segue, trata-se de, durante a expiração, expulsar todas as energias perturbadas pelas acções negativas (uma acção pode ser física, verbal ou mental) praticadas sob a influência dos cinco venenos (4). O ar expirado drena também os bloqueios físicos ou mentais que daí resultam, fontes de irritação, de tensões e de reacções agressivas. As cinco «emoções perturbadoras» tornam-se de facto em energia e alteram a saúde, a paz mental e o ambiente circundante.
Adoptem a postura em sete pontos, as palmas das mãos pousadas sobre os joelhos. Apoiem a extremidade do polegar na base do anelar de cada mão, e mantenham uma ligeira pressão, o que terá por efeito converter a energia negativa em energia positiva. Depois, inspirando normalmente, levem a mão direita à cara, tapando a narina esquerda com a extremidade do anelar e expirando pela narina direita, enquanto abrem a mão esquerda pousada sobre o joelho esticando os dedos. Enquanto expiram, considerem que estão a expulsar todas as energias poluídas pelo ódio e pela agressividade. Pensem que libertam assim os bloqueios em todo o corpo, e que todos os nós subtis se desfazem.
Repousar a mão direita sobre o joelho e, durante a inspiração, levantar a mão esquerda. Tapar a narina direita com a extremidade do anelar. Com os polegares pressionando sempre a base dos dois dedos anelares, expirar pela narina esquerda esticando os dedos da mão direita. Ao mesmo tempo, considerem que estão a expulsar as energias adulteradas pelo apego egoísta; pensem que todos os bloqueios físicos e subtis ligados ao desejo, à frustração e à inveja se desfazem. Apegar-se aos seres e às coisas procurando um prazer pessoal e imediato bloqueia a corrente da alegria e da felicidade verdadeiras.
Finalmente, fechem os punhos sobre os polegares, pousem-nos sobre os joelhos e inspirem lentamente, depois expirem com força pelas duas narinas. Abram as duas mãos esticando os dedos. Considerem que expulsam a energia adulterada pela ignorância. Pensem que os bloqueios devidos a conflitos exteriores e interiores causados pela ignorância se dissolvem. A ignorância fundamental mantém-nos num estado de confusão; desorientados, agimos sem compreender realmente os actos, nem mesmo ter uma clara consciência, e isto perturba a circulação da energia.
Estes exercícios podem ser feitos três vezes. No decorrer da primeira série, a expiração far-se-á docemente, enquanto que na segunda, mais profundamente, e para terminar, muito profundamente. Esta técnica de respiração, que acompanha a concentração mental, age de uma maneira subtil e poderosa sobre o espírito, sobre a circulação da energia e sobre o corpo. No fim do exercício, considera-se que os canais subtis estão completamente limpos: tudo se torna perfeitamente límpido e transparente.



Alternância de concentração e repouso
Estar fisicamente num lugar tendo o espírito noutro, não é difícil, todos sabemos como isso se faz: a maior parte do tempo o espírito está disperso e galopa em todos os sentidos. Saber centrá-lo e repousar é um verdadeiro trunfo, particularmente num mundo onde projectos e actividades são incessantes. O treino da concentração num ponto é um meio excelente de aí chegar.
No caso presente, a respiração será o objecto da concentração. O exercício consiste em estar atento à respiração durante alguns minutos, o que conduz a um estado de calma. Experimente contar tranquilamente os movimentos da respiração, sem alterar o ritmo natural e sem se distrair um instante sequer, a fim de estar realmente presente, aqui e agora. Uma vez que o espírito fique perfeitamente focado no vaivém da respiração durante sete respirações, será possível prolongar a duração da concentração e contar onze respirações, vinte e uma ou mais.
Duma maneira geral. Respiramos pelo nariz. Quando estamos ao pé do mar, ou na montanha ou num lugar desimpedido em plena natureza, podemos respirar suavemente pela boca, os lábios entreabertos.
É conveniente alternar cada período de concentração com um momento de descanso de duração equivalente ou, sem contar nem se concentrar seja sobre o que for, procura-se ficar simplesmente no aqui e agora. A alternância destas duas fases evitam o defeito de uma grande crispação e permite que a energia se equilibre de uma maneira harmoniosa.
Praticada regularmente, esta técnica traz uma clareza de espírito cada vez mais profunda que acalma o corpo e o espírito. É um treino muito útil, para si mesmo e para todos os seres, Assim que ele for explicado em detalhe no capítulo dedicado à técnica do tonglen, podemos ajudar os seres apoiando-nos na respiração. Quando inspiramos tomamos os seus sofrimentos e quando expiramos deixamos verter sobre eles rios luminosos de compaixão.



1.3 - AS TRÊS SÍLABAS ADAMANTINAS E AS LUZES
Depois da concentração sobre a respiração, manda a tradição que se concentre sobre as luzes de cor e das sílabas sagradas a fim de desenvolver os diferentes aspectos da sabedoria. Entre todas as cores, retemos cinco: o branco, o vermelho, o azul, o amarelo e o verde. Cada uma delas produz efeitos diferentes sobre os centros e os órgãos do corpo, que por sua vez estão em correspondência com os elementos e as energias. Da mesma maneira os sons Om Ah Hung Svâhâ agem sobre os chakras e sobre as emoções perturbadoras que lhes estão ligadas. Na prática quotidiana, contentamo-nos em utilizar as três cores principais: o branco, o vermelho e o azul, e as três sílabas Om Ah Hung.
Sentados, o corpo ao mesmo tempo direito e livre de toda a tensão, imaginem no espaço à vossa frente um disco luminoso branco, tal como uma lua radiosa e tranquila que se levanta no horizonte. Pensem que esta fonte luminosa contém as bênçãos do corpo, da palavra e do espírito de todos os seres despertos, e se expande em inumeráveis raios irisados.
Se quiserem aguçar as vossas faculdades de concentração, imaginem que o círculo cresce até encher o espaço todo e depois de reduz a um ponto minúsculo de intensa luz branca.
Podem experimentar visualizar perante vós a forma luminosa, limpa e transparente de um ser perfeitamente iluminado. Da sua testa, da sua garganta e do seu coração partem alternadamente e depois ao mesmo tempo, brilhantes luzes brancas, vermelhas e azuis que são absorvidos pelos vossos três centros. A luz branca, que penetra pela testa, inunda o vosso corpo, desfaz as energias boqueadas e restabelece o equilíbrio. Ligeiro e livre, um profundo bem-estar invade-vos. Os raios de luz vermelha brilham na garganta do ser desperto e vêm dissolver-se na vossa garganta. Eles purificam os bloqueios e acalmam os desequilíbrios ligados à fala. Depois, emanando do seu coração, uma luz azul vem encher o vosso coração.; essa luz dissolve todos os vossos bloqueios, medos e angústias. A paz estabelece-se em vós.
Durante toda esta visualização, recitem em silêncio ou em voz alta as sílabas do mantra (5) Om Ah Hung tantas vezes quanto possível. O som Om ressoa naturalmente no centro da fronte, o som Ah no centro da garganta e o som Hung no centro do coração.
Em resposta à infinita variedade de situações, os seres despertos transmitiram inúmeros mantras. As três sílabas Om Ah Hung são alternadamente a fonte e a essência desses mantras. Capazes de desfazer os bloqueios e de transformar as emoções perturbadoras ficando inalteráveis, chamamo-las as três sílabas adamantinas, por analogia com a pedra preciosa e indestrutível que é o diamante.
As práticas que utilizam estas três sílabas são múltiplas. A luz branca está geralmente relacionada com a sílaba Om, a vermelha com a sílaba A e a azul com a sílaba Hung. Podemos utilizar as três sílabas uma a seguir a outra ou em conjunto, mantendo sempre a concentração no disco luminoso. Podemos ainda associá-las aos três movimentos da respiração: Om à inspiração, Ah durante um ligeiro tempo de retenção, Hung à expiração.
Aqueles que quiserem tratar ou curar os outros podem praticar todos os dias a visualização de luzes recitando longamente as três sílabas. Com efeito, trazer uma ajuda eficaz requer muita força e energia. Cultivamo-las recorrendo a esta técnica experimentada que consiste em receber as bênçãos dos seres despertos e em avivar a essência subtil dos elementos; reter o ar e regenerar os elementos internos com A; e expirar com Hung enviando a luz em direcção àqueles a quem procuramos ajudar.
Estas técnicas de meditação sobre um ponto luminoso ou sobre as luzes associadas às sílabas têm variadas aplicações. Quando a prática se relaciona com o corpo, utiliza-se a luz branca. Se queremos antes agir sobre a palavra e a circulação das energias, visualizamos uma cor vermelha como um sol nascente. A cor azul está mais ligada ao espírito.
As cinco cores são utilizadas para purificar e dissolver os bloqueios que provocam os cinco venenos ou emoções perturbadoras. O branco age sobre a agressividade, o vermelho sobre o apego, o azul sobre a ignorância, o amarelo sobre o orgulho e o verde sobre a inveja.
Logo que aplicadas às actividades, cada cor tem a sua função. O branco pacifica e purifica; o amarelo aumenta (a energia vital, por exemplo); o vermelho controla as forças; o verde estimula a actividade; o azul traz equilíbrio e harmonia.
Visualizar regularmente as sílabas com as suas cores respectivas faz florescer as capacidades auto-curativas: os nós formados nos canais subtis pelos bloqueios de energia desfazem-se e a atenção aos outros aumenta. Isto melhora no princípio a comunicação e, no fim, desenvolve a capacidade de apaziguar e curar o próximo.
As luzes e o mantra têm também uma virtude purificadora, pois eles agem em profundidade para desbloquear e reequilibrar corpo, palavra e espírito. Eles constituem suplementarmente uma protecção muito eficaz contra as substâncias tóxicas. Esta técnica tem ainda outras aplicações, muito numerosas. Um exemplo: temos muito calor? Imaginamos rios de luz refrescante. Temos frio? A luz torna-se num raio de calor agradável que enche o corpo de bem-estar.
No momento de concluir a sessão e de oferecer os méritos, podemos hesitar: mesmo em ausência de toda a distracção, os conflitos interiores podem ter perturbado o curso da meditação. É bem preferível que esta seja harmoniosa. Entretanto, se ela não o foi, o tempo e a energia que a ela foram consagrados guardam sempre o seu valor e merecem ser dedicados. A dedicatória dos méritos preserva as virtudes de uma sessão; eles propagam-se indefinidamente.



1.4 - REFLEXÃO SOBRE QUATRO TEMAS
De acordo com a tradição, depois de ter aberto o seu espírito com os exercícios precedentes, entregamo-nos numa reflexão sobre os quatro temas que incitam o espírito a reencontrar a sua liberdade intrínseca. Estas reflexões tratam de realidades quotidianas que, geralmente, evitamos ou nos fazem recuar de medo por acordar perguntas destabilizadoras. A tradição budista considera que é preferível olhar estas realidades de frente e utilizar toda a sua força para levar a busca interior tão longe quanto possível. Apresentados brevemente aqui, certos temas voltarão a ser tratados ao longo do nosso estudo.
(1) O Buda e os nossos mestres afirmaram-no: em comparação com outras formas de vida, a vida humana tem um valor particular. Ela torna-se «preciosa» quando aquele que a possui tem as liberdades e as condições favoráveis que, por si, permitem conquistar a liberdade última, para si mesmo e para o bem de todos. (As liberdades e as condições favoráveis serão explicadas em detalhe no capítulo consagrado ao yoga do mestre). Em todos os outros estados de existência, o sofrimento que resulta de actos passados entrava todo o progresso espiritual.
(2) Esta preciosa vida humana, apesar das liberdades e condições favoráveis, continua a ser efémera. A sua duração é forçosamente limitada e o surgimento da morte é totalmente imprevisível. O grande mestre Dilgo Khyentse Rinpoche disse:

Possamos nós sentir até que ponto a loucura humana se assemelha a um bando de pássaros que se encontra à tardinha em cima de uma árvore; desde que o dia começa a raiar, eles levantam voo e dispersam-se. Tudo será destruído ou dissolvido, como um jarro de barro não cozido sobre o qual deitamos água. Toma consciência de que a morte é não somente certa, mas que ela chega sem avisar, fazendo-nos compreender até que ponto é urgente praticar a via espiritual. É insensato crer que teremos tempo livre para praticar mais tarde! Não percamos tempo, todas as actividades desta vida são fúteis. Pensem no ditado: As actividades, como jogos de crianças, não acabam por si só; tal é a sua natureza: eles param quando as abandonamos.


(3) O terceiro tema refere-se à necessidade de conhecer a natureza das acções e dos seus efeitos para compreender a importância de uma atenção constante. «Acção», ou «acto», cobre neste contexto todas as acções, sejam elas físicas, verbais ou mentais. Cada acção chama uma «reacção»: feliz no caso de um acto altruísta, dolorosa no caso de um acto negativo. Ninguém deseja o sofrimento; a solução passa pelo abandono de comportamentos que o produzem e a procura de comportamentos que dão resultados positivos.
(4) O quarto tema de reflexão refere-se às experiências resultantes dos actos. Os nossos actos passados condicionam também as diferentes dimensões onde se apresentam os fenómenos de que nos apercebemos (6) da vida presente e das existências seguintes. Nesta vida, certos acontecimentos ou fenómenos são compreendidos como positivos, outros como negativos. Os primeiros resultam de actos positivos, enquanto que as circunstâncias desagradáveis provêm de actos negativos. A multitude de acções sustentadas pelas emoções perturbadoras criam espécies de campos de energia subtil. É a partir daí que os fenómenos se podem manifestar desta ou daquela maneira. Uma predominância negativa, por exemplo, produz dimensões onde os fenómenos parecem desagradáveis ou assustadores. Tudo isto confirma que os diferentes estados de existência no qual os seres são levados a nascer são determinados pelas suas próprias acções . (Os seis estados de existência serão abordados mais em detalhe no capítulo consagrado ao yoga do mestre, a propósito das liberdades e das condições favoráveis).
Como é isto possível? Cada ser, desde que passe por experiências desagradáveis, guarda a marca disso na sua consciência fundamental, um estado de consciência muito subtil que é a base de outras formas de consciência. De resto, toda a acção ou situação vivida, seja ela positiva, negativa ou neutra, é registada nessa consciência fundamental. Quando o espírito está livre de tensões, ou quando a energia subtil circula livremente no corpo, como no decurso do sonho por exemplo, as percepções, os sonhos ou pesadelos inesperados podem surgir: são as impressões acumuladas na consciência fundamental de cada um que produz esta infinita variedade de percepções imprevisíveis,
Os sonhos não são os únicos que se formam desta maneira, todas as experiências vividas na vida presente estão condicionadas pelos nossos actos passados. Os actos presentes irão condicionar as nossas percepções futuras.
O resultado de uma acção depende parcialmente da intenção que a motiva, e depende por outro lado também da intensidade do sentimento que a impregna. Uma acção motivada por uma intenção muito positiva e executada alegremente com o corpo e o espírito, trará rapidamente um resultado feliz. Um acto violento cometido sob a influência da agressividade amadurece rapidamente também mas trará como consequência um grande sofrimento.
Isso não é todavia sempre o caso, pois os resultados das acções não são necessariamente visíveis de imediato. Estaremos assim inclinados a pensar que a lei da causa e do efeito não se verifica. Na realidade, é possível que as reacções não se produzam senão em vidas ulteriores. É interessante notar também que uma só acção pode engendrar um ou vários efeitos. Um só acto inspirado pelo desejo de ajudar todos os seres e executado com uma alegria sincera produz frutos positivos inconcebíveis e inesgotáveis. Lamentar ter agido com bondade atrasa os efeitos felizes de um acto positivo, sobretudo se ele não foi dedicado. Lamentar sinceramente um acto nocivo pode anular o resultado. É por vezes possível contrabalançar um acto negativo com um acto positivo.
Os quatro temas servem para demonstrar a urgência de procurar a liberdade última. Mas ainda é preciso saber do que temos que abrir mão a fim de conseguir essa liberdade... Nós somos todos detentores da essência fundamental da liberdade. Nem num só momento este estado de iluminação esteve separado de nós: ele pertence a cada um de nós de maneira intrínseca. Por isso, no plano relativo, os véus mentais impedem-nos de o reconhecer. Esses véus, em número de vinte e quatro mil, conduzem a cinco tipos que correspondem aos cinco principais venenos já mencionados, e dos quais três são facilmente reconhecidos: a aversão, que abrange todos os aspectos do ódio e da cólera; o apego egoísta com o seu cortejo de desejos e paixões; a ignorância, ou confusão mental. Os dois outros, o orgulho e a inveja (ou desejo), são por vezes mais difíceis de serem distinguidos.
As cinco emoções perturbadoras tecem permanentemente véus que impedem de reconhecer a liberdade e a paz fundamentais. É por isso que, qualquer que seja o seu nível, todas as técnicas de meditação, e em particular as cinco práticas preliminares que vamos abordar, servem para mostrar como é possível trabalhar com os cinco venenos de maneira a libertá-los no estado de sabedoria.

SEGUNDA PARTE
PRÁTICAS DE BASE



As práticas aqui detalhadas, sem fazerem parte dos Preliminares propriamente dito, são técnicas gerais que constituem as fundações do treino espiritual. Elas são frequentemente utilizadas como prática quotidiana quando falta o tempo para uma sessão mais longa ou perante certas situações críticas, onde elas se tornam o primeiro reflexo. É essencial treiná-las desde já.
2.1 - O MANTRA DOS BUDAS
Esta meditação, como todas as outras, será abordada aplicando as técnicas já descritas: a intenção altruísta, a postura em sete pontos, os exercícios de expiração e a concentração sobre o vaivém da respiração. Visualizem em seguida diante de vós um vasto espaço azulado, tal como um céu sem nuvens. Aí aparece uma esfera luminosa, no centro da qual desabrocha uma flor de lótus encimada por dois discos de luz horizontais, um lunar, o outro solar.
A luminosidade da esfera representa a claridade da verdadeira natureza do espírito. O lótus simboliza a pureza, livre de todas as emoções perturbadoras. Da mesma maneira que esta planta tem as raízes no lodo sem que a sua flor fique suja, a compaixão mergulha as suas raízes na lama dos cinco venenos permanecendo sabedoria imaculada. O disco lunar simboliza a sabedoria e o conhecimento, enquanto que o disco solar representa a grande compaixão.
Sobre o disco solar, visualizem de acordo com a vossa conveniência uma esfera luminosa branca ou uma forma simples do Buda.
Pronuncie três vezes a homenagem:
Namo Bouddhâya
Namo Dharmayâ
Namo Sanghâya

e cante em seguida o mantra dos seres iluminados:
Téyathâ Om Mouni Mouni Mahâ Mounayé Svâhâ

Com a ajuda desta luz e do poder do mantra, deixem que o vosso amor se expanda. Depois, fique alguns minutos no estado de simplicidade natural do espírito.
Concluam dedicando as forças positivas nascidas do tempo e da energia consagrados a esta meditação: possam elas eliminar o sofrimento, a miséria e as frustrações físicas ou mentais de todos os seres! Do fundo do coração, desejem a felicidade de todos, humanos e não-humanos.

2.2 - O MANTRA DA SABEDORIA SUPREMA
Com frequência, antes de começar uma prática espiritual ou um trabalho importante, é bom consagrar o local e a nossa intenção com o mantra da sabedoria transcendental.
Téyathâ Om Gaté Gaté Pâragaté Pârasamgaté Bodhi Svâhâ

Todos os aspectos da sabedoria e do conhecimento podem ser explicados a partir deste mantra, da essência do prajñapâramitâ ou sabedoria suprema, pois ele contém a essência de todos os ensinamentos dados por Buda.
Literalmente, as sílabas do mantra significam:
Têyathâ: como os Budas.
Om: de bom augúrio (pode ter outros sentidos, consoante o contexto).
Gaté: que foi, ou que teve sucesso. Esta palavra é repetida quatro vezes, em referência aos quatro níveis de sucesso que leva à bodhi.
Pâragaté: que foi sem dificuldade, ou que conseguiu sem dificuldade.
Pârasamgaté: que foi completamente.
Bodhi: a perfeição do despertar.
Svâhâ: omnipresente.

Uma tradução simples poderia ser: «Como os budas, possamos nós concluir sem obstáculos tudo aquilo que começamos».
Este mantra evoca assim as cinco vias sucessivas percorridas pelos budas para atingir a iluminação absoluta: a via da acumulação, a via da junção, a via da visão ou dacompreensão, a via da meditação e do treino espiritual, e a via além da meditação.
Este conjunto de sílabas foi transmitido de mestre a discípulo desde Buda Shakyamouni até aos nossos dias. Ele explica as diversas etapas da prática, da qual a conversão dos cinco venenos em cinco sabedorias, e a maneira de seguir as cinco vias que levam à realização dos cinco budas centrais do mandala.
Podemos também aplicar este mantra aos acontecimentos da vida quotidiana para que tudo se passe sem obstáculos. Antigamente nos países budistas, os ferreiros, os médicos, os carpinteiros ou os sapateiros utilizavam este mantra consoante as necessidades da sua arte; alguns tornaram-se assim, sob uma aparência vulgar, grandes siddhas (7). Para um médico por exemplo, as sílabas do mantra representam os cinco órgãos, a essência dos cinco elementos e as diferentes maneiras de socorrer a outrem. Desde que um camponês receba o mantra do seu mestre espiritual, ele poderá aí encontrar, sob forma codificada, todas as informações necessárias ao seu trabalho. Significando exactamente “possa tudo ser favorável”, o mantra traz a ciência das cinco etapas que um camponês tem obrigação de conhecer: o local, a orientação, a estação, a forma de fertilizar a terra e de associar as plantas para afastar insectos, bem como o momento propício à colheita. O carpinteiro, por sua vez, pode deduzir o modo de fabricar os seus utensílios, as essências que deve usar, o momento propício para cortar a madeira, os segredos da montagem, etc.
Nos nossos dias, o saber é encarado de um ponto de vista meramente técnico, enquanto que outrora ele consistia num conhecimento sagrado transmitido de mestre a discípulo no seio de cada corporação: a profissão era um ritual que tinha em conta a via espiritual. Aqueles que, tendo recebido tais ensinamentos, sabiam integrá-los na sua vida quotidiana, tornavam-se com frequência grandes sábios.
As sílabas de um mantra não são anódinas, elas detêm um poder estimulante. O simples facto de recitar regularmente o mantra da prajñapâramitâ aumenta as capacidades intelectuais do praticante libertando os bloqueios que o impedem de estudar, de compreender ou de memorizar.
As aplicações deste mantra são múltiplas. Ele oferece uma ajuda preciosa no momento de começar uma tarefa quando nos encontramos num ambiente adverso, ou ainda se acordamos com uma sensação desagradável, uma angústia ou um mau pressentimento. Sonhar, em geral, não é exactamente fazer o visionamento de uma cassette de video: os sonhos que o espírito projecta no decurso do sono são simples reflexos ilusórios do jogo de energia passando sobre as impressões que pensamentos e acções deixaram na consciência fundamental. Mas por vezes as energias de quem dorme estão em perfeito equilíbrio e o seu espírito encontra-se num estado particularmente subtil. Os sonhos trazem-lhe então indicações específicas, donde alguns podem revelar-se premonitórios e avisar, por exemplo, dum perigo iminente para si próprio, seus parentes ou outros. Se tal é o caso, ele pode fazer apelo ao mantra da prajñapâramitâ : recitar nove ou vinte e uma vezes tem por efeito afastar ou dissipar completamente as dificuldades que se anunciam.
Nesta circunstância é preciso visualizar da seguinte maneira: durante a primeira parte da recitação, vagas de bênçãos de todos os seres iluminados inunda-vos e vós tomais a forma luminosa dum buda radiante de compaixão. Continuem recitando pelo menos nove vezes o mantra, conscientes do valor inestimável desta prática transmitida oralmente através de uma linhagem ininterrupta de mestres. Sobre a palma da vossa mão direita, visualizem um disco solar, e sobre a mão esquerda, um disco lunar. Obstáculos, forças negativas e outras causas de eventuais acidentes ou dificuldades juntam-se no centro do disco lunar. Sentindo claramente isso, recitem ainda o mantra e depois batam energicamente palmas por três vezes. Nesse preciso instante, os obstáculos são aniquilados e todos os perigos desaparecem, desintegrados entre o sol e a lua.
Esta técnica aliando concentração mental e a recitação do mantra pode, pela força da prática, tornar-se muito poderosa. Transmitida em linha directa, ela já provou a sua eficácia imensas vezes. Antes de a exercer, é preferível receber a transmissão de um mestre que a detenha.

2.3 - O SOFRIMENTO E A ORAÇÃO
Todos sabemos que duas pessoas sensíveis podem comunicar-se mentalmente desde que elas estejam «em sintonia». A oração procede deste plano subtil. Que ela tome a forma de palavras, de mantras cantados ou de silêncio, um simples pensamento ou um desejo emitidos do fundo do coração, ela tem o seu poder dentro das profundezas do espírito. Quando mais este último se aproximar da sua simplicidade natural, maior o poder dinâmico e a eficácia da oração. O estado no qual se encontra o espírito influencia profundamente a acção. Multiplicar os pensamentos positivos permite transformar aquilo que é negativo.
Rezar utilizando mantras transmitidos por seres iluminados veicula uma grande força, uma vez que cada sílaba, cada palavra, cada frase, e mesmo a sua melodia, são consagradas por poderosas bênçãos.
Para quê serve a oração? Ela é uma ajuda preciosa desde que desejemos o desaparecimento do sofrimento. Temos sem dúvida uma consciência aguda do sofrimento desde que esta se manifesta abertamente; é por isso natural que desejemos a sua desaparição. Mas o importante é aí reconhecer as causas e desejar que elas desapareçam o mais depressa possível. Na origem da ausência geral de segurança no mundo encontram-se os cinco venenos do espírito. Exteriormente, eles provocam toda a espécie de catástrofes; interiormente, eles engendram perturbações mentais. A oração tem o poder de apaziguar ou de transmutar estes venenos e de parar então o sofrimento.
Os ensinamentos de Buda falam de quatro grandes rios de sofrimento que trazem os seres: o nascimento, o envelhecimento, a doença e a morte. Cada um atravessa essas quatro experiências no decorrer da sua existência.
(1) No Ocidente, o nascimento não é geralmente considerado como uma experiência negativa. Todavia, se olharmos de mais perto, é difícil avaliar as sensações dolorosas que a maioria dos seres encontra no decurso do período perinatal. A primeira angústia é a de encontrar uma matriz. Em seguida, para conseguir manter-se durante nove meses nesse refúgio, é preciso ter estabelecido nas vidas passadas uma relação estreita com a sua futura mãe, aquilo que não é simples. A terceira etapa, a do parto e do nascimento, é mais frequentemente vivido como um sofrimento intenso tanto para a mãe como para a criança; o choque é de resto tão violento que a consciência prefere esquecer.
(2) O segundo rio de sofrimento é a doença. Toda a patologia reveste-se de um aspecto geral ligado às suas causas, as emoções perturbadoras, e aos aspectos particulares ligados aos seus efeitos. O traço principal da doença consiste na dificuldade de encontrar rapidamente medicamentos eficazes.
(3) Ninguém duvida que a velhice seja, na maioria do tempo, uma experiência dolorosa... As forças estiolam, os sentidos ficam entorpecidos, as faculdades declinam e o menor gesto exige uma energia que rareia.
(4) Naquilo que diz respeito ao quarto rio de sofrimento, a morte, nota-se, para ser breve, que poucos seres parecem tirar algum prazer disso...

As outras aflições são consideradas menores; mas serão elas portanto menos dolorosas que as anteriores? Numerosos são os seres que vivem precariamente ou com privações: excluídos, sem amizade, sem abrigo, eles não possuem nem mesmo o estritamente necessário... Outros, que tiram prazer de grandes riquezas e de uma posição social elevada, vivem em permanente pavor de ladrões e na obsessão de perder o seu estatuto. Esses que estão rodeados de familiares e de amigos temem o dia da sua separação. Ao contrário, numerosos são aqueles que vivem na apreensão de se encontrar face a face com aqueles que eles temem ou detestam.
Os ensinamentos citam ainda três grandes flagelos - a guerra, a fome e as epidemias - os quais afligem os seres desde sempre.
Nas vossas orações, pensem desejar do fundo do coração a desaparição dos quatro grandes rios a fim de que cada ser não tenha jamais que passar por tais experiências. Enviem pensamentos positivos a todos aqueles que sofrem. Possam todas as formas de medo, de dor e de desastre, naturais ou não, desaparecer!
Os cinco venenos, sobretudo a aversão, o apego e a ignorância, entravam a oração e os pensamentos de benquerença. Os exercícios descritos acima constituem a melhor forma de se preparar para que a oração seja eficaz e tenha efeitos benéficos: a expiração permite expulsar as energias poluídas e desfazer os nós nos canais subtis; é em seguida importante procurar o equilíbrio e o apaziguamento do espírito alternando a concentração sobre a respiração e o descanso. Depois, experimentem sentir a presença dos seres iluminados. A sua luz enche-vos e purifica-vos. Com estas técnicas como prelúdio, as vossas orações e desejos terão mais força.
Um outro método muito eficaz consiste em associar a oração à respiração dentro da prática de tonglèn, que será explicada mais adiante,
Não se esqueçam de concluir dedicando todos os vossos pensamentos positivos à paz no universo.
É certo que a tarefa parece gigantesca e até podemos perguntar como é que pensamentos podem ser uma ajuda seja ela qual for ao sofrimento omnipresente. A todo o momento, num ou noutro lugar do globo, pessoas morrem de fome, outras são massacradas ou sucumbem à doença. Como podem os pensamentos ajudá-los?
Cada um de nós está intimamente ligado a todos os seres do universo. É por isso que importa pensar no bem de todos. Pensamentos de amor e de compaixão emitidos por um espírito concentrado, claro e livre de tensão, são extremamente poderosos. Quando os seres são torturados pela fome, guerra ou na impossibilidade de comunicar, é o seu espírito que experimenta o sofrimento, seja ele físico ou mental. Um corpo sem espírito não sofre. Na morte, o espírito separa-se do corpo; todos sabemos que um cadáver não sente a dor. Porque é o espírito que sente o sofrimento, pensamentos positivos podem contribuir para a cura.
Os resultados das orações são em função da força mental e da habilidade adquiridas graças a um treino constante. Numerosas são as tradições que reconheceram nos sábios mais notáveis a capacidade de apaziguar ou de tomar a dor de outrem. Essa faculdade é acessível a todos, é uma simples questão de prática: só podemos dar a paz a outrem se a tivermos em nós mesmos.

2.4 - TONGLÈN: TROCAR A FELICIDADE PELO SOFRIMENTO
Para começar uma sessão consagrada à prática da troca (tonglèn), adoptamos a postura em sete pontos e aplicamo-nos aos exercícios de respiração e de concentração que já foram referidos. Uma vez o espírito estabilizado, meditamos sobre a compaixão: desejamos que todos os seres sejam libertos do sofrimento e das causas do sofrimento, Depois, seguindo o ritmo natural da respiração, consideramos que, quando inspiramos, tomamos o sofrimento de outrem, visualizado sob a forma de uma nuvem escura. A compaixão que sai agora impetuosamente em si, transforma esta nuvem em luz que, pela expiração, se propaga a todos os seres. Esta imensa claridade dissolve os seus véus mentais e enche-os de paz e de bem-estar, tão simplesmente como se ligássemos o interruptor para acender uma luz que dissipa instantaneamente todas as trevas do mundo.
Todas as espécies de circunstâncias podem ser postas à prova para praticar a troca. Estamos ao pé do mar? Pensemos na multidão que povoa os oceanos e entreguemo-nos ao tonglèn. É certo que, à primeira vista, os seres marinhos não se parecem connosco. Mas o seu espírito não difere fundamentalmente do nosso. A sua forma actual é o resultado dos seus actos anteriores. Como todos os seres do universo, eles procuram o bem-estar e temem o sofrimento. Os grandes peixes comem os pequenos, as espécies minúsculas devoram os grandes, e todos são pescados pelo homem. A sua vida não é mais que incerteza e terror. Desejemos tomar esse sofrimento mental e físico para dar em troca rios de luz e de compaixão.
Estamos de passagem por uma grande cidade? Pensemos em todas as pessoas que aí vivem, em todos os seres, visíveis ou não, que a povoam, e pratiquemos a troca.
Quando nos aplicamos a ajudar os outros de esta maneira, apagamos pela mesma ocasião os traços que os actos negativos imprimiram na nossa consciência fundamental. Um treino assíduo permite mesmo, a longo prazo, apagar os traços de outrem.
No momento de inspirar, não deixe que o medo de não poder assumir todo o sofrimento o faça hesitar. O pensamento do despertar é suficientemente poderoso para transformar tudo. É a este pensamento que devem apelar com todas as vossas forças. Este amor é inerente a cada ser. Mesmo o predador mais feroz é sensível à fragilidade e ao sofrimento dos seus filhotes; para protegê-los e alimentá-los, ele enfrenta todos os perigos.
Esta bondade profunda está adormecida em cada um de nós, sendo preciso acordá-la: ela é a aliada mais poderosa para transformar o sofrimento em liberdade.
Talvez achem surpreendente considerar os seres humanos, animais e outras formas de vida como nossos semelhantes em espírito? Na realidade, não é do ponto de vista da aparência que eu os comparo, mas do da sua natureza fundamental. A maneira através da qual cada ser se manifesta é função da forma física que ele se reveste, e depende dos limites desta. Cada vez que um ser muda de corpo, ele é como um viajante que muda de hotel e que pode encontrar-se um dia no mais simples albergue e no dia seguinte num palácio. As condições exteriores variam mas o viajante não muda. Da mesma maneira, os seres podem renascer dentro de um ou outro dos seis mundos de existência, pois o seu potencial profundo não se altera (8).
Nos já vimos que o espelho da nossa vida presente reenvia a imagem dos nossos actos passados, e que a vida futura será o reflexo dos nossos actos presentes; daí a importância de ensinar a todos a não-violência. É um meio seguro de obter, a breve ou a longo termo, a paz para si mesmo e para os outros.
Talvez se interroguem sobre a justificação dum treino como o da troca. Não é desperdiçar o seu tempo em vez de consagrar alguns minutos ou algumas horas da vida quotidiana a praticar? Não de todo. O treino permite em primeiro lugar compreender melhor o sentido da vida, e revela-se a seguir um trunfo precioso no momento da morte. Bem entendido, a morte não é um tema sobre o qual as pessoas gostem de falar. Todavia, uma vez que nascemos, inevitavelmente teremos que morrer um dia. Nesse dia, só o treino espiritual adquirido durante a vida nos ajudará a encontrar a liberdade.
No momento da morte, a consciência deixa o corpo tendo como a sua única bagagem o karma resultante dos seus actos passados. Tal como a sombra segue o corpo, os resultados dos actos benéficos ou nocivos seguem o princípio consciente. No momento da passagem, se o espírito estiver todo impregnado de benquerença e de compaixão, a experiência da morte, tal como as condições da vida futura serão inteiramente transformadas. Eis porque esta fase é crucial, e é importante fazer com que estes pensamentos se tornem familiares durante toda a vida presente. O treino de tonglèn fará com que, no momento da morte, eles voltem naturalmente ao espírito.
A prática da troca será assim uma grande ajuda durante essa travessia perigosa. Poderemos aplicar esse treino quando um parente, um amigo ou um animal familiar se encontra no seio da morte. Assistir a um moribundo na fase crítica pode constituir uma verdadeira salvação. É preciso, no momento em que a consciência deixa o corpo e começa a errar no estado intermediário, ser capaz de tomar o sofrimento para, em troca, inundá-lo de luz.
Nos estados próximos da morte, o espírito passa por experiências comparáveis às vividas nos sonhos: durante o sono o corpo está imóvel enquanto que o espírito continua a funcionar, e conhece uma imensidão de experiências. Imediatamente após a morte, o corpo, inerte, é abandonado, mas o espírito continua a viver toda a espécie de acontecimentos. As primeiras percepções estão principalmente relacionadas com recordações da vida que acabamos de deixar. A seguir entramos numa fase onde se vê o que será a próxima vida. Tudo é vivido no plano mental e subtil.
Antigamente, existia quase em todo o lado uma tradição de acompanhar os moribundos. Hoje em dia isso faz imensa falta. A maior parte das pessoas não quer sobretudo pensar na morte, e assistir a alguém nesses momentos que precedem a morte e que a seguem está frequentemente fora do seu alcance. Eles não dispõem de tempo suficiente ou, muito simplesmente, não sabem o que fazer. Muitos pensam que só um padre está indicado para fazer o que é preciso para acompanhar aqueles que partem. Na realidade, cada um pode desenvolver a capacidade de socorrer os moribundos com a ajuda de pensamentos positivos e de oração, já que todos os seres sem excepção partilham desta base comum que é a natureza do despertar.
Nós veremos nos capítulos seguintes os treinos que associam o tonglèn às meditações sobre o amor, a compaixão. A alegria e a imparcialidade; esses são os utensílios de primeira importância que nos servirão para toda a vida.
No dia a dia, praticar a troca facilita de imediato a comunicação e apazigua rapidamente qualquer conflito. Nós estamos de facto sempre fortemente inclinados a nos queixarmos perante as dificuldades, atirando constantemente a culpa para cima dos outros: pai, mãe, o patrão, o vizinho, o governo ou a sociedade... Não será mais inteligente inverter esta atitude e questionarmos a nós próprios? Não teremos nós uma parte da responsabilidade em tudo o que nos acontece? Esta maneira de pensar apresenta pelo menos uma vantagem: em lugar de nos pormos no papel de vítimas, somos livre de trabalhar sobre nós mesmos para agir sobre a situação.



TERCEIRA PARTE
AS PRÁTICAS PRELIMINARES



Com o objectivo de transformar as emoções perturbadoras, os treinos de base do budismo tântrico tibetano utiliza cinco práticas de purificação que agem de maneira subtil e eficaz sobre o corpo e o espírito. Elas são o refúgio, o treino do espírito iluminado ou bodhicitta, a purificação pela meditação sobre Vajrasattva, a oferta do mandala e o yoga do mestre.
3.1 - O refúgio, antídoto do orgulho

Na maior parte do tempo, o orgulho, que nasce e cresce sob a influência da ignorância, leva-nos a sustentar com tenacidade posições sem fundamento real. O orgulho não é de facto a tendência de pensar e de tentar provar que as nossas ideias, mesmo falsas, são as melhores? Se elas o fossem verdadeiramente, isso não seria tão grave. Mas com frequência esse não é o caso, e nós sofremos terrivelmente por não termos sempre razão. Certas formas de orgulho, muito subtis, são difíceis de reconhecer. De uma maneira geral, o orgulho impede-nos de estarmos satisfeitos com aquilo que temos. Esta insatisfação traz consigo sentimentos de insegurança e de angústia crescentes e, para acabar, deixam-nos totalmente desorientados. Assim, a primeira das práticas preliminares é o «refúgio», uma técnica de meditação que transforma a nossa propensão de sermos terrivelmente egocêntricos. Para transformar o orgulho em sabedoria libertando-o na natureza absoluta, a prática do refúgio associa visualização, oração, mantras e exercícios físicos.
Em tibetano, refúgio diz-se kyap dro (kyap: refúgio, protecção; dro: ir, tornar-se).
Como regra geral, os seres que não se sentem em segurança, vão à procura de protecção. A prática do refúgio dá confiança àquele que a ela se consagra fazendo-o redescobrir a protecção da sua natureza profunda. A aquisição duma verdadeira confiança interior varre todos os véus que geram o medo e a insegurança.
Uma tal confiança não pode eclodir se não for sob a protecção de um mestre cuidadosamente escolhido: um cego não pode guiar outro cego. Temos necessidade de nos apoiarmos em seres completamente despertos, e isso, até à descoberta do verdadeiro refúgio interior, a natureza de buda latente em cada um de nós. ‘’Todos os seres possuem o embrião do despertar, e é isso que lhes permite atingir o estado de buda» dizem os ensinamentos. Ninguém poderá jamais perder este potencial que lhe é natural; só os nossos véus mentais nos impedem de o reconhecer. Todos os treinos têm por fim dissipá-los.
Pode parecer inconcebível que um minúsculo grão guarde uma árvore magnífica, e todavia... Da mesma maneira, todos os seres dispõem do potencial do despertar total. Assim, para acedermos ao refúgio último, o estado de buda, é necessário que primeiramente nos entreguemos a seres perfeitamente despertos. A prática do dharma permite a seguir ter uma realização íntima do refúgio. Os ensinamentos tornam-se assim no caminho que leva a bom porto - o despertar perfeito.
Do ponto de vista exterior, é o Buda que é o refúgio inultrapassável. Do ponto de vista interior, o termo «buda» designa o estado desperto do nosso próprio espírito. O ensinamento, ou dharma, constitui a via necessária ao desabrochar das qualidades do espírito. Para seguir este caminho, é necessário apoiarmo-nos no sangha, a comunidade daqueles que conhecem o dharma.
Podemos dizer assim: ‘’O refúgio absoluto é o estado de buda, o dharma é a via, e o sangha aqueles que nos acompanham na via’’.


O Buda
Em sânscrito, boud significa «totalmente desperto do sono da ignorância». Dha quer dizer «eclosão perfeita da potencialidade fundamental» e designa o pleno desabrochar do conhecimento, da sabedoria, da compaixão - em resumo, de todas as qualidades que é possível desenvolver.
Dentro desse contexto, quando falamos de «buda», trata-se não somente do Buda histórico chamado Gautama (ou Shâkyamuni), mas também de todos aqueles que atingiram o despertar. Isso situa-se acima do plano universal, bastante além das limitações específicas do Oriente e do Ocidente. Os budas desvendaram perfeitamente os dois aspectos da omnisciência: eles conhecem todos os fenómenos logo que eles aparecem, e a natureza de todas as coisas tal como ela é. Os seres despertos actualizaram as cinco sabedorias: para eles, os cinco venenos transformaram-se em cinco sabedorias, Tendo libertado tudo o que há a libertar (boud) e realizado tudo o que havia para ser realizado (dha), eles são budas, «despertos».
Na impossibilidade de encontrar tais seres, é possível tomar refúgio no ensinamento que eles deixaram, apoiando-nos naqueles que seguem esta via e o assimilaram.


O Dharma
A palavra ‘’dharma’’ tem etimologicamente dez sentidos. Aqui significa «aquilo que guia, que leva a um bom caminho» indicando aquilo que devemos adoptar e rejeitar. O dharma, também chamado de «caminho», inclui todos os ensinamentos de nos chegaram desde Buda até hoje por uma transmissão ininterrupta de mestres.
Existem diferentes níveis de ensinamentos. O ensinamento principal descreve em detalhe como os seres estão mergulhados na ilusão, e a forma pela qual se poderem libertar. A característica dos ensinamentos de Buda é que, pondo-os em prática, traz uma claridade de espírito que mostra a totalidade do caminho e dissipa os obscurecimentos.
Encontramos por todo o mundo uma abundância de ensinamentos religiosos e filosóficos. Alguns têm por efeito aumentar a cólera e as emoções. O «dharma» de que falamos aqui possui, ao contrário, o poder de libertar os seres de emoções perturbadoras. Essa é a sua primeira virtude, consequência de ele estar fundamentado na não-violência. O aspecto irado de algumas representações de budas na iconografia tibetana é puramente simbólica. A espada que o buda Mañjushri brande, por exemplo, representa a sabedoria que corta os obscurecimentos e subjuga as manifestações demoníacas interiores.


O Sangha
Em tibetano, qualificamos o sangha em duas palavras, rig dreul, expressão que une a sabedoria (rig) e a liberdade (dreul); mais precisamente, a tomada de consciência do nosso potencial e a libertação daquilo que nos afasta dela. Aquele que consagra a sua vida ao caminho da liberdade faz parte do sangha. Não podemos considerar como membro do sangha uma pessoa que não tem a menor noção do que é a via, nem o menor desejo de dedicar a sua vida a outrem; como, então, apoiarmo-nos numa pessoa tal para atingir a libertação?
O sangha designa todos aqueles que detêm e vivem os seus ensinamentos e as suas práticas. Esse termo tem vários níveis de significado mas traduzimos literalmente por «aqueles que inspiram o desejo de seguir o caminho da virtude», os amigos espirituais, o grupo de praticantes, ou de maneira mais geral, todas as pessoas que consagram a sua vida ao socorro e à paz de todos os seres.


O voto do refúgio
Quando fazemos a escolha consciente de tomar refúgio, é melhor escolher o refúgio último. É a melhor maneira de progredir no caminho espiritual.
Entre as Três Jóias, Buda, dharma, sangha, alguns dão primazia ao mestre ou ao guia espiritual, uma vez que ele representa os seres despertos sendo a fonte dos ensinamentos. Outros dão mais importância aos ensinamentos, pois eles permitem atingir o despertar. Para outros ainda, o contacto com os companheiros espirituais tem um papel maior. Não existe uma regra absoluta, somos todos diferentes e podemos escolher de acordo com as nossas necessidades e inclinações.
Saibam sobretudo, no momento de tomar refúgio, que a vossa motivação pode ser mais ou menos vasta: podem considerar o triplo refúgio como um barqueiro, indispensável somente para vos fazer chegar à outra margem, ou decidir tomar enquanto vós e todos os seres não estiverem livres do sofrimento e do perigo. Assim cada um toma refúgio pelo tempo que corresponde à medida da sua motivação. De facto, alguns tomam refúgio para se protegerem durante esta vida apenas, e preferem não pensar naquilo que a seguir se passará; outros, com uma abertura de espírito inconcebível, a compaixão imensa, comprometem-se até que todos os seres sem excepção tenham atingido o despertar. Definitivamente, cada um é livre de orientar a sua ou as suas vidas de acordo com os seus desejos e capacidades.
A seguir, aquele ou aquela que decidir apoiar-se nas Três Jóias deve saber o que é preciso evitar ou adoptar:
Tomando refúgio no Buda, renunciamos a tomar refúgio em seres ou pessoas que não estão ainda perfeitamente despertas, ou de objectos exteriores (árvores, montanhas, sol, etc.).
Tomando refúgio no dharma, comprometemo-nos a fundamentar pensamentos, palavras e actos na não-violência e a não fazer mal aos outros, bem como a todas as formas de vida em geral.
Tomando refúgio no sangha, escolhemos evitar associarmo-nos àqueles que perturbam os outros ou que os prejudicam, pelo menos até termos adquirido a capacidade de libertá-los da sua confusão, e comprometemo-nos a cultivar o altruísmo incansavelmente.


A prática do refúgio
Apesar desta prática ser um antídoto eficaz para todas as emoções perturbadoras, a prática do refúgio tem efeitos principalmente sobre o orgulho. Esta prática recorre a duas abordagens, uma relativa, outra absoluta.
No plano relativo, fazemos apelo às técnicas que tomam a luz como suporte da concentração. Visualizando diante de vós uma forma luminosa e vazia de seres despertos, concentrem-se na sua presença e recitem os diferentes mantras e orações ligadas ao refúgio. Podem por exemplo reportar-vos ao texto do refúgio dos «Preliminares do Novo Tesouro» de Dudjom Rinpoche:

De hoje em diante, e enquanto eu não tiver atingido o coração do despertar,
Tomo refúgio no Lama, no Buda, no dharma e no sangha.
A forma elaborada desta prática é acompanhada de prosternações. Mantenham a mesma visualização e ofereçam uma prosternação por cada recitação da oração.
No plano absoluto, o refúgio consiste em deixar o espírito repousar no estado livre de todos os conceitos de sujeito, objecto e acção, experimentando ficar na simplicidade natural do espírito. (Aqui o sujeito é aquele que toma refúgio, o objecto aqueles em quem tomamos refúgio, e a acção o facto de tomar refúgio. Este tema será aprofundado em capítulos seguintes).
Vejamos mais precisamente este treino. O princípio é de implicar simultaneamente o corpo, a palavra e o espírito no processo da purificação. Sentem-se confortavelmente mantendo a coluna vertebral bem direita. Podem juntar as mãos à frente do vosso coração ou pousá-las sobre os joelhos, de acordo com aquilo que melhor vos convier. Na moldura duma meditação extremamente simplificada, é suficiente concentrar o espírito sobre uma esfera de luz. Com um pouco de treino poderão visualizar no espaço à vossa frente um ser desperto e considerá-lo como a essência de todos os budas do passado, do presente e do futuro. Se as inquietações ou os pensamentos começarem a desfraldar, apliquem-se simplesmente a afinar os detalhes da visualização. Mantendo quer a visualização, quer o estado de simplicidade, cantem as estrofes do refúgio, recitem mantras e, em casos limites, multipliquem as prosternações.
Consoante o nível da prática, uma prosternação pode ser considerada como uma homenagem, ou como um meio de se ligar à energia interior. O exercício físico é o seguinte: pomo-nos de pé, os pés unidos, as mãos em «botão de lótus» diante do coração. Elevando as mãos juntas para levá-las sucessivamente à frente da testa, à garganta e ao coração, abrimo-las seguidamente inclinando-nos para pousá-las no chão ao lado dos nossos joelhos, antes de escorregar para a frente, de maneira a alongarmo-nos completamente. A testa vai tocar o chão entre os braços estendidos, as mãos juntam-se na parte mais elevada do crânio. Levantando-se rapidamente no movimento inverso, tomamos a posição inicial.
Este treino de movimentos reveste-se de um simbolismo muito completo. Os pés unidos representam o equilíbrio das energias solar e lunar que se apoiam sobre a terra, recordando também que o relativo e o absoluto se unem sem conflito. As mãos unidas ao nível do coração - a base das palmas das mãos unidas, as extremidades dos outros dedos tocando-se ligeiramente, os polegares no interior da cavidade - formam um botão de lótus representando a sabedoria (ou a vacuidade) inseparável da compaixão. Aliás. Este gesto ou mudra leva todas as energias positivas ao coração. Levar as mãos sucessivamente à testa, à garganta e ao coração, exprime a sublimação das energias desviadas do corpo, da palavra e do espírito. Tocar o chão com as mãos, os joelhos e a testa (portanto em cinco pontos) simboliza a libertação dos bloqueios físicos.
É uma prática muito eficaz, um yoga completo posto em prática especialmente por praticantes que dedicam a maior parte do seu dia à meditação imóvel. Estaríamos muito errados se a puséssemos de parte alegando que ela é muito simples.
A formulação da oração do refúgio é especial para cada conjunto de práticas preliminares. A sua expressão mais breve é:

Namo Boudhâya
Namo Dharmâya
Namo Sanghâya
Isto significa: «Homenagem ao Buda, homenagem ao dharma, homenagem ao sangha».
Quem rende homenagem, e a quem? Visualizem no espaço à vossa frente o objecto do refúgio: um buda ou uma assembleia de seres despertos, emitindo raios de compaixão e de luz. Em toda a vossa volta, vejam a infinidade de seres do universo a tomarem refúgio convosco: à direita e à esquerda os vossos pai e mãe actuais, que vos deram esse precioso corpo humano, em seguida os vosso familiares e amigos e todos os seres sem excepção.
A prática dos ensinamentos fundamenta-se na não-violência, pelo que devem pôr à vossa frente os vossos inimigos. Serão eles realmente inimigos? Examinem em quê eles vos parecem hostis: o mais frequente é por causa duma ligação negativa estabelecida pelo passado que um ser será julgado ameaçador. Na realidade, nada nem ninguém pode ser qualificado como «inimigo». Mesmo uma pessoa maldosa não procura fazer mal se não estiver sob a influência do seu próprio sofrimento; ela merece por isso um lugar de eleição nas vossas orações.
Durante a recitação do refúgio (ou durante as prosternações), pensem que os raios de luz provenientes dos budas transmutam todo o sofrimento: esta luz enche e purifica todos os seres, dissipando os bloqueios e os véus ligados ao corpo, à palavra e ao espírito. Ela regenera as vossas forças e protege-vos, evitando que executem actos negativos. Inundando o corpo, a palavra e o espírito de todos os seres, as suas vagas purificam igualmente a atmosfera e o ambiente.
Pratiquem assim o refúgio durante um certo tempo, mergulhados na oração e na luz. No fim da sessão, considerem que vós mesmos e todos os seres saem purificados. Dissolvendo-se em luz, estes últimos dissolvem-se uns nos outros e fundem-se em vós. Agora, vocês tornam-se luz, para se dissolverem finalmente na forma do ser desperto que, por sua vez, desaparece em luz.
O espírito fica no momento presente, aqui e agora, sem seguir os pensamentos do passado, do presente ou do futuro: é a purificação absoluta. É aquilo a que chamamos «repousar no estado natural do espírito», um estado de frescura e de simplicidade, além de todos os conceitos.
Treinar encontrar esta simplicidade fundamental permite restaurar a confiança na nossa verdadeira natureza. A pulsão do orgulho, essa necessidade de provar a nossa superioridade que não é mais do que um sintoma de falta de confiança em nós, desaparece, completamente liberta dentro do estado da sabedoria equânime.
Conclua cada sessão de prática dedicando os méritos ao despertar de todos os seres.
Tomar refúgio é uma forma de dar de si, uma oferenda. Com o voto do refúgio, comprometemo-nos a consagrar o treino espiritual ao bem de todos; esta resolução suporta a nossa prática e atrai, por intermédio do mestre espiritual, o apoio de todos os seres despertos. Pronunciar formalmente o voto do refúgio e receber um nome espiritual estabelece com efeito uma ligação profunda com a linhagem de transmissão de Buda. Um praticante sente com frequência a necessidade de se comprometer de uma forma tradicional, não porque seria impossível de progredir sem isso, mas simplesmente porque a sua prática recebe muitos benefícios.
Para concluir este capítulo, citarei três estrofes dum ensinamento de um dos meus mestres principais, Dilgo Khyentse Rinpoche:

Para desenvolver a verdadeira confiança
Que varre tendências e véus kármicos
Fazendo-nos reconhecer o nosso despertar inato,
Tomemos apoio no refúgio relativo.

O refúgio absoluto, nosso despertar inato, é o fruto:
A natureza de buda, presente mas ignorada,
O estado natural de cada ser, de cada coisa.
Ao reconhecer o nosso despertar inato, tomamos refúgio absoluto.

O refúgio absoluto é a verdadeira natureza do espírito
Cujo conhecimento imediato tem três aspectos:
A vacuidade, que constitui a sua essência, a luminosidade a sua expressão.
E a sua bondade profunda como uma imensidade onde nada faz obstáculo.



3.2 - A BODHICITTA, ANTÍDOTO DA INVEJA


As expressões «espírito de despertar» e «pensamento de despertar» que traduzem o termo sânscrito «bodhicitta» - bodhi, iluminação ou despertar, e citta, coração ou espírito - designam o estado desperto do espírito.
Dilgo Khyentse Rinpoche explica porque estamos tão longe do despertar:
O apego e a aversão são as verdadeiras causas do nosso vaguear contínuo no samsara. (9) Como chegámos a isso? No princípio tivemos um pensamento individualista. A seguir a esse pensamento desenvolveram-se toda a espécie de noções tais como «meu corpo», «meu espírito», «meu nome» e assim por diante. A seguir formou-se o pensamento de «o outro». À força de considerar que alguns destes «outros» eram agradáveis ou benéficos ao «eu», nasceram sentimentos de apego e de desejo, e, inversamente, sentimentos de aversão e ódio em relação àqueles que julgámos desagradáveis ou nocivos para esse «eu». Nós somos incapazes de atingir o despertar, porque nós estamos presos em ciclos incessantes de atracção-repulsão.

Desenvolver a bodhicitta é uma prática que permite varrer os véus mentais e subjugar todas as emoções perturbadoras. Ela é particularmente eficaz para reconhecer e transformar a inveja.
Os ensinamentos falam da bodhicitta como base, via e fruto. O potencial de despertar é a base que possuem todos os seres, sejam eles minúsculos ou agressivos. A via é o ensinamento que nos ensina a desenvolver esse despertar. O fruto é o pleno desabrochar desta potencialidade e correspondente ao nível dos seres perfeitamente despertos.
Como para refúgio, a fim de entrar na prática da bodhicitta de forma tradicional, podemos confiar na linhagem ininterrupta de bênçãos transmitidas de mestre a discípulo pronunciando formalmente o voto dos bodhisattvas na presença de um mestre espiritual ou de um objecto sagrado. Esta transmissão confere uma força espiritual importante, que nos ajudará a cultivar o espírito de despertar sem interrupção e sem dificuldade. Podemos escolher um dia especial para tomar ou renovar este compromisso, mas a bem dizer nos dias em que decidirmos desenvolver o espírito de despertar, esse dia será «especial». Tradicionalmente, os dias de lua cheia, de lua nova e de mudança de fase são considerados propícios, por causa da influência da lua sobre os movimentos de energia subtil no corpo; um voto tomado nessa altura ganha em poder. Para tomar um exemplo que não é muito feliz, é como se preparássemos uma emboscada a um inimigo num desfiladeiro sabendo o dia e a hora da sua passagem: o sucesso está garantido. Mas não pensem sobretudo que a bodhicitta só se cultiva em presença de um ser desperto, ou no tal dia de calendário. Podemos bem fazê-lo sozinhos, a todo o momento; podemos mesmo começar de imediato! A bodhicitta está em cada um de nós. Ela não está reservada a uma elite. Extremamente vasta, ela é universal: todos os grandes sábios do mundo deram este ensinamento sobre o amor, eu não vos peço que façam eclodir um amor «oriental» ou «búdico», eu peço-vos que permitam simplesmente que o vosso potencial de amor universal se expanda.
No que se refere à duração deste compromisso, é possível adoptar a via dos bodhisattvas por uma hora, um dia, um mês, ou então até que todos os seres tenham atingido a liberdade perfeita. O essencial é começar e concluir este acto com uma atitude resolutamente positiva.



A bodhicitta relativa; os quatro pensamentos ilimitados
A prática que visa o desenvolvimento da bodhicitta comporta, como o refúgio, um aspecto relativo e um aspecto absoluto. Para aprofundar o primeiro, apoiamo-nos em diversas técnicas de meditação, em particular nessas que se referem aos «quatro pensamentos ilimitados»: o amor, a compaixão, a alegria e a equanimidade.



O amor
O amor, ou a benquerença, é aqui o desejo de que todos os seres sejam felizes e conheçam a causa da felicidade. No plano relativo, a verdadeira causa da felicidade é a bondade, simplesmente «ter bom coração». Portanto, os pensamentos negativos ou violentos produzem infalivelmente o sofrimento, sem um só instante de tranquilidade ou de alegria, enquanto que a benquerença e o altruísmo são sempre uma fonte de felicidade e de paz. No plano absoluto, desejar aos seres que conheçam a causa da felicidade implica que eles possam reconhecer o estado de sabedoria que não é nem obscurecido nem alterado pelas emoções perturbadoras.
Cada um já experimentou sem dúvida um rasgo de amor ou de bondade incitando a oferecer a felicidade a outrem, alguém próximo ou estranho. Um tal sentimento irrompe das profundezas do ser e ultrapassa de longe o pensamento intelectual. De facto, é uma qualidade inata; numerosos exemplos provam-no. Uma imagem marcante é a do amor maternal. Dentro do reino animal, por exemplo, a mãe ave é conhecida pela sua ternura imensa e espontânea para com os seus filhos. Antes da postura de ovos, ela constrói cuidadosamente um ninho macio ao abrigo dos predadores. Em seguida, ela choca os ovos quase sem interrupção, apesar da fome e das intempéries. Quando as aves nascem, ela defende-as com o bico e com as garras sem pensar na sua própria vida. Mesmo fatigada e esfomeada, ela alimenta sempre os seus filhos em primeiro lugar. Ela faz tudo isso naturalmente, sem jamais esperar nada em troca. Uma tal forma de abertura desinteressada, que nós sentimos mais voluntariamente por aqueles que nos estão ligados, é bastante próximo daquilo que convencionamos chamar de «amor» no presente contexto. Esta faculdade de desejar tornar todos os outros felizes existe em semente no fundo de cada um; é suficiente fazê-la crescer.
Pode acontecer que esse sentimento irrompa espontaneamente mas que seja difícil de tirar proveito disso, pois não sabemos como exprimi-lo ou aumentá-lo. É por isso uma qualidade universal, que nos liga uns aos outros; e porque nós temos esta potencialidade, fonte de toda a felicidade, porquê não desenvolvê-la até que ela se exprima continuamente?
É preciso começar por olhar em si mesmo para fazer eclodir a bodhicitta, depois desenvolvê-la e estabilizá-la, para estendê-la ao infinito. Nós sentimos com facilidade o afecto pelos nossos amigos; abramos então o nosso coração a todos os seres, sejam eles humanos ou não. De seguida, não será somente necessário solidificar esse amor, mas ainda de dar-lhe uma dimensão ilimitada: desejemos que em todos os reinos de existência os seres encontrem a verdadeira felicidade e a sua causa profunda - o estado de liberdade total que é a sabedoria interior.



Alguns conselhos do coração
Vários obstáculos interiores podem-se manifestar quando começamos a meditar sobre o amor. Um deles consiste em excluir-se a si próprio da globalidade desse amor. Pensar em todos os seres, humanos ou não, inclui a nossa pessoa. É um ponto que convém não esquecer. Se pensar «sim, eu sinto amor por todos os seres», faça com que isso não seja apenas palavras. Seria fácil de mais. Por vezes não englobamos nesse amor todos os aspectos de que somos feitos. Na aparência cremos que devemos devotar-nos a todos os seres, mas no fundo não nos ocupamos de nós mesmos. Para amar e ajudar os outros é preciso saber amar-se. Sentir um amor muito vasto desbloqueia naturalmente as tensões físicas e mentais. É suficiente que o espírito abandone a conceptualização para que as tensões se apaguem. A profunda diminuição da tensão interior que daí resulta, dissipa as doenças físicas e as perturbações mentais.
Um outro obstáculo que pode surgir é o desvio egoísta. Vendo de perto, não estaremos nós um pouco obcecados pelo nosso próprio prazer, nosso conforto exclusivo, tomando-nos como o centro do universo? Nós cremos amar as pessoas que nos rodeiam e desejar o seu bem-estar, mas com frequência amamo-los pelo conforto e segurança que eles nos trazem. Este egoísmo cai inevitavelmente com fracasso desde que cultivemos o amor verdadeiro. Tornamo-nos então uma grande ajuda para os outros.
«Mas, pensam talvez, tirar toda a subjectividade da minha faculdade de amar, e estendê-la sem limites, isso não diminui a minha felicidade e a minha estabilidade?». Pelo contrário, desabrochará de dentro um bem-estar real, mais profundo e mais autêntico.
«Será oportuno, numa época tão dura como a nossa, de acarinhar um sonho tão maravilhoso? É mesmo esse o meu caminho, perguntam-se talvez, não é preciso temer que todo o mundo procure tirar proveito de mim, que isso se torne um desastre, e assim por diante?» Não se deixem entravar por tais pensamentos. Tentem quanto antes deixar que o espírito de desspertar desabroche o mais possível. «Ajudando os outros, ajudamo-nos a nós mesmos», dizem os sábios. O amor é, antes de tudo, uma atitude interior; quando agirem, procurem fazer o que é melhor para os outros. Sobretudo, face a uma situação que exija firmeza, tenham a certeza de que a vossa acção se fundamenta na bondade antes de mostrar o mínimo de severidade.
Amar a outrem é vital. Por isso, a menos que essa abertura não seja já espontânea e permanente, há que ser cultivada. O primeiro passo, já referido, consiste em se comprometer a seguir a via dos bodhisattvas e a juntar-se a esta linhagem viva.
No decurso da prática, apoiem-se nos budas e nos bodhisattvas, tomando-os como testemunhas do vosso desejo e da vossa decisão de cultivar desde o presente o amor pelo bem de todos.
Sintam a presença de todos os seres despertos sob a forma de uma poderosa luz branca cujos raios purificam tudo o que possa impedir o desabrochar do espírito de despertar. A luz derrama-se sobre vós e sobre todos os seres. Utilizem a respiração e façam propagar à vossa vez esta luz sobre a infinidade de formas de existência, considerando que o espírito de despertar latente em cada um se desabrocha plenamente. Existem orações particulares para este treino, como esta contida no breve texto dos Preliminares do Novo Tesouro:

De hoje em diante, e enquanto o samsara não se esgotar,
Trabalharei para o bem e a felicidade de todos os seres,
meus verdadeiros pais.

Podemos também simplesmente servirmo-nos do pensamento.
Para progredir na via, treina-se aumentar sem cessar a benquerença. Uma técnica consiste em interiorizar e pensar numa primeira fase num ser que nos é caro, depois tentar estender este amor a um número crescente de seres.
Como vimos, este tipo de introspecção faz às vezes ressurgir um ponto sensível ou um bloqueio vindo de experiências passadas. Isto pode ir até à descoberta do ódio em relação a si próprio. Ora, é difícil desenvolver a faculdade de amar e de servir a outrem se formos incapazes de amar a nós mesmos.
Nesse caso, a primeira etapa consiste em trabalhar sobre si. Para ultrapassar todos os bloqueios, olhem o problema bem de frente e concentrem-se na luz dos seres despertos. O vosso corpo é constituído por cinco elementos (terra, fogo, água, ar e espaço). Os cinco elementos encontram-se também, no estado de energia pura, na presença dos seres despertos, cuja luz transbordante de bênçãos vos enche dissolvendo o ponto preciso onde nasce o vosso ódio por vós próprios. Sirvam-se igualmente da vossa respiração: absorvam sob a forma de luz a benção dos seres despertos e, em particular, a essência subtil dos cinco elementos. A luz que vos inunda varre os defeitos e age sobre os bloqueios e os pontos em desarmonia. Ao expirar, pensem que libertam todas essas tensões, que são retiradas e dissolvidas. Perseverem assim, sessão após sessão, até fazer desaparecer esta intolerância em relação a vós.
Uma vez restabelecido o equilíbrio e a confiança em si, os sentimentos de culpa e de incapacidade para fazer face às situações da vida acabam por se dissipar. Desde agora, é possível desejar o bem-estar do próximo, da sua família e de todos os seres. Começa-se portanto, numa primeira fase, por aprender a amar-se e a encontrar a sua autonomia. Mas cada ser não pode sobreviver só no universo; não estamos todos ligados uns aos outros? Importa, consequentemente, estender este amor a todos aqueles que nos rodeiam, sem esquecer os animais e as outras formas de existência.
Podem orientar esta reflexão para um ser particularmente próximo, vossa mãe por exemplo. Não se detenham nos seus eventuais lados negativos, considerem antes as suas qualidades. Quaisquer que sejam as relações que hoje mantêm com ela, a vossa mãe deu-vos afinal esta preciosa vida humana da qual gozam neste momento. Tomar nascimento não é uma tarefa menor: durante uma grande parte do bardo (o período intermediário entre uma morte e um renascimento), o princípio consciente erra desesperadamente à procura de uma matriz para aí se refugiar. Não se encontra com facilidade uma mãe, pois só nos podemos abrigar numa matriz dum ser com quem uma relação muito forte foi estabelecida no passado.
Durante os nove meses da gestação, a mãe alimentou com a sua própria essência vital a criança que viria. Esta última só traz consigo o princípio consciente, o pai doa a sua semente e tudo o resto incumbe à mãe. Raros são os nascimentos que se passam sem dor ou dificuldade para ela. Os ensinamentos dizem que no momento do parto, ambas, mãe e criança, se encontram a meio-caminho da morte. Se a seguir a passagem do nascimento ao estado adulto tivesse lugar instantaneamente, isto seria perfeito; a mãe poderia enfim estar tranquila. Mas a sua criança tem necessidade de cuidados constantes durante muitos anos.
Após um nascimento, a família e os amigos chegam e extasiam-se à frente do bebé; este último, de facto, está tão desprovido como uma larva. Incapaz de se mover e de falar, ele só pode mexer-se um pouco e chorar. Quando nós éramos bem pequenos, não nos sentámos nunca nos joelhos da nossa mãe para que ela fizesse as nossas toilettes? Foi preciso que ela se ocupasse incansavelmente de nós, em todos os planos, até que nos tornássemos independentes.
Alguns pensam que a sua mãe lhes deve isto por causa de uma ligação kármica, e que é o dever dos pais ocuparem-se das crianças. Mesmo se assim fosse, era preciso saber reconhecer o que isto representa em termos de tempo e bondade. Ora, por enquanto, uma tal compreensão é ainda problemática: como explicam os ensinamentos, até à abertura do olho da sabedoria, temos a tendência de ver nos outros os defeitos mais depressa que as qualidades. Quando a sabedoria eclode, o que se passa no estado intermédio é-nos revelado; sabemos então até que ponto é difícil encontrar uma mãe.
Pensando assim na amplitude do serviço prestado, perguntemo-nos como agradecer à nossa mãe e como aligeirar o sofrimento de todas as mães, esta da nossa vida presente e essas das nossas inumeráveis vidas passadas. Com efeito, desde tempos sem começo, por ocasião de milhares e de milhões de encarnações que vivemos sobre esta terra e sobre outros planetas, foi-nos sempre preciso tomar corpo. Quantos seres foram nossas mães, num ou noutro momento, sob uma ou outra forma, dentro dum ou doutro mundo? Não há um único ser ao qual não estamos ligados.
Uma das maneiras de manifestar o reconhecimento a todos os seres, nossos pais, consiste em esforçarmo-nos em trazer a cada um aquilo que lhes faz falta. A melhor maneira de o conseguir é ter um bom coração e dispensar a todos amor, compaixão e alegria, com toda a imparcialidade; praticar e realizar intimamente o espírito de despertar é a maneira mais eficaz de os ajudar na sua vida presente e no bardo.



A compaixão
A compaixão é o desejo de libertar os seres, sejam eles quem forem, de toda a forma de sofrimento. O sofrimento, físico ou mental, toma raiz nas atitudes e actos negativos, e prolifera numa multitude de frustrações e de males. Ela impregna todas as formas de existência. Os ensinamentos classificam estes diferentes modos de ser em seis estados: dum lado, os reinos dos seres humanos, os seres celestes e os animais, e do outro lado, num plano estritamente mental, os reinos dos infernos, dos espíritos esfomeados e dos titãs.
O budismo considera de facto que o mundo dos homens não é o único; existem outros mundos e outras dimensões. Nós, humanos, só nos apercebemos geralmente do nosso reino e do reino animal. Mas não é por não vermos os quatro outros reinos que convém negar a sua existência.
As nossas faculdades mentais e visuais não estão à medida de tudo conceber. O homem vulgar é dotado daquilo que damos o nome em tibetano de «olhos de flictena» (bolha de serosidade transparente, ampola) que só apreendem um campo de visão imediato e limitado. De facto, o ser humano dispõe de diversos tipos de visão. Alguns possuem aquilo que em tibetano se chama os «olhos da carne», capazes de ver muito longe e mesmo através de objectos sólidos como as colinas e as montanhas. A vista daqueles que têm os «olhos celestes» cobre distâncias imensas. Os «olhos do conhecimento», adquiridos pelo treino e experiência, podem ver o passado e o futuro.
Quanto à visão «desperta» dos seres realizados, ela não tem limites: abraçando o universo inteiro, ela conhece a natureza dos fenómenos tal qual ela é. Segundo esta visão perfeitamente clara, paralelamente aos reinos humanos e animal, existem outras dimensões, e uma coisa é certa: nenhum dos seres que erram nestes diferentes mundos pôde encontrar a liberdade interior. Na imensa maioria, eles padecem de sofrimentos extraordinários. Donde provém todo este sofrimento? De emoções perturbadoras e de consequentes actos negativos. De acordo com Buda, só o facto de conceber os diferentes reinos está ligado aos nossos actos passados e presentes. As experiências duma pessoa sob o efeito de uma droga não são todas tingidas por efeitos alucinantes desta? Sucede quase o mesmo para os diferentes fenómenos apercebidos nos seis reinos de existência; eles são projectados pelas emoções perturbadoras e os actos consequentes. Dilgo Khyentsé Rimpoché explica:
Como um artista possuidor de uma vasta paleta pode pintar uma infinidade de
telas, da mesma forma as misturas de positivo e negativo determinam onde
retomamos nascimento.
Os actos inspirados por uma grande aversão dão nascimento àquilo a que chamamos de «infernos quentes» e de «infernos frios». A agressividade é um sentimento tão explosivo, e a sua expressão tão violenta, que cria percepções intoleráveis de infernos quentes. Porém, a violência não se mostra sempre abertamente; às vezes ela é muito forte mas não expressa; está-se gelado de cólera e de ódio contidos. As acções impregnadas por este tipo de cólera criam percepções atrozes de infernos frios.
Os seres que, sendo largamente providos, são incapazes de partilhar a mais pequena parte com aqueles que têm necessidades, por outras palavras, os seres dominados pela avareza, prometem-se experiências alucinatórias do reino dos espíritos famintos: uma fome e uma sede que nada pode apaziguar.
Aqueles que têm preguiça intelectual e a fraqueza de intuição preparam alucinações do estado animal, com a sua servidão, o seu medo constante e os seus outros sofrimentos mentais.
As acções positivas embuídas de orgulho conduzem os seres às alucinações dos reinos «celestes»: durante longas eras, os deuses de longa vida dispõem instantaneamente de tudo o que lhes faz feliz, mas no momento de morrer, o facto de sentirem este maná escapar causa-lhes um sofrimento e uma angústia indizíveis.
A inveja engendra pela sua parte as ilusões do reino dos titãs e o sofrimento de guerras perpétuas.
Enfim, uma mistura destas emoções perturbadoras onde domine o apego produz percepções do reino humano, no qual os principais sofrimentos são o nascimento, a doença, a velhice e a morte.
Mas não existe senão sofrimento? Estes seis reinos de existência não comportam verdadeiramente nenhum aspecto positivo? Sim! A motivação positiva e os quatro pensamentos ilimitados, que podem conduzir os seres para além do círculo vicioso. As boas acções estão necessariamente na origem da preciosa vida humana, nosso quinhão actual. É primordial tirar partido de todas as possibilidades que ela nos oferece: é ela que permite a libertação e o socorro de todos os seres.
Se consagrarmos o tempo e a energia necessários à exploração perfeita desta oportunidade, nós poderemos mesmo atingir a libertação última desde esta vida, bloqueando à partida as vagas de emoções perturbadoras cujos efeitos já avaliámos em tantas vidas de sofrimento.
O comprimento da nossa vida é função das nossas acções no decorrer de existências precedentes. A menos que acumulemos acções extremamente positivas, não a podemos prolongar, e cada segundo nos aproxima da morte. Mesmo que hoje em dia se considere que a esperança de vida no Ocidente é de 70 ou 80 anos, inúmeras causas podem interromper o curso duma existência. Três factores entram em jogo: a duração da vida, a energia vital e o princípio vital. Se um destes três factores for fortemente perturbado por uma ou outra razão, torna-se difícil continuar a habitar o presente corpo. Este carácter efémero da vida sublinha a urgência de desenvolver o mais depressa possível a capacidade de se ajudar a si mesmo e a ajudar os outros. É uma incitação mais para cultivar o espírito desperto, a fim de atingir custe o que custar o nível último da libertação.
Sob o seu aspecto absoluto, a compaixão sublima a causa do samsara: pois são as emoções perturbadoras que engendram atitudes e actos negativos, são elas que é necessário libertar no estado de sabedoria sem limites, onde cessam os conceitos de sujeito, objecto e acção.
Resumidamente, a compaixão relativa leva a trabalhar com todos os seres no plano material, físico e espiritual; a compaixão absoluta trata as verdadeiras causas do sofrimento.
No decurso da meditação sobre a compaixão, pensem no sofrimento, nas suas causas e deixem crescer em vós uma aspiração profunda: desejem que todos os seres não sejam jamais confrontados com a dor, a miséria, a frustração e às acções que elas originam.
Como na meditação sobre o amor, podemos começar por aqueles que nos são próximos e estender em seguida de maneira ilimitada a compaixão a todos os seres.
A alegria
A alegria é a capacidade de sentir júbilo cada vez que encontramos pessoas felizes. Em vez de sentir inveja pela sua felicidade física, mental ou material, desejamos que o seu bem-estar não só aumente, mas dure indefinidamente. Dentro deste contexto, «cultivar a alegria» significa apreciar a felicidade de outrem, deixando de lado a inveja que a torna insustentável.
Esta faculdade de sentir júbilo em vez de se deixar ir numa inveja subtil ou malvada comporta um aspecto superficial e um aspecto profundo. Alguns pensamentos ou simples palavras não bastam. Trata-se de fazer brotar este sentimento das profundezas do ser. Esta prática aumenta a propensão a ser feliz e permite regular as numerosas dificuldades físicas e mentais ligadas à inveja. Fonte de felicidade e de longevidade, ela amplia e prolonga a alegria dos outros.
O treino da alegria é idêntico ao do amor e da compaixão: no decurso da meditação, exercitamos a engendrar este sentimento e a mantê-lo durante o máximo tempo que for possível. A seguir, aplicamo-nos a integrá-lo continuamente em todas as situações da vida corrente. É um muito bom meio de libertar as vagas de alegria que, do círculo próximo, se estendem cada vez mais.



A equanimidade
Cultivar o amor, a compaixão e a alegria em relação àqueles que já amamos ou àqueles que nos são próximos é relativamente fácil. Mas para que estes sentimentos incluam todos os seres sem excepção, é indispensável cultivar a equanimidade (10). Na moldura da prática, comecem por sentir esses três sentimentos em relação àqueles que vos são próximos e que já amam, depois estendam-nos àqueles que conhecem menos bem. Para terminar, chegam ao nível dos grandes sábios do passado em que o amor, a compaixão e a alegria abraçava todos os seres, compreendendo os seus «inimigos», com toda a imparcialidade. Dilgo Khyentse Rinpotche o disse nestes termos:
Sem alguma parcialidade, a terra suporta tão bem os reis e os poderosos
como os mendigos e os criminosos. Ela não suporta apenas os bons para
afundar-se sob os pés dos maus. Nós devemos sentir esta mesma imparcialidade
no amor e na bondade que estendemos a todos os seres, na verdade nossos pais.
A equanimidade é adquirida exercitando-se primeiro mentalmente, depois integrando-a na vida quotidiana. O objectivo é chegar a um estado de igualdade onde não se faça a menor distinção entre si mesmo e os outros. Esta imparcialidade sem limites estende-se aos animais e a todos os outros seres. Como poderíamos excluí-los? Sentimos a afeição pelo nosso animal da casa. Apercebemo-nos de que ele precisa, tal como nós, de felicidade e de bem-estar. Os outros animais não são diferentes: todos procuram o bem-estar, nenhum deseja o sofrimento. Quando eles têm fome, frio, ou quando eles são torturados, eles sofrem da mesma maneira que nós.
Alguns terão dificuldade em admitir que a potencialidade de despertar existe no reino animal. Todavia, os ensinamentos de seres realizados afirmam-no. O facto de os animais manifestarem amor pelas suas crias é disso um sinal. O pensamento que poderemos igualmente cuidar de todos os animais do planeta como fazemos com o nosso animal doméstico pode parecer ridículo. Na realidade, a prática da equanimidade pede que, numa primeira fase, façamos nascer o pensamento, e depois cultivar uma atitude que englobe todos os seres. Pouco a pouco adquirimos de uma forma natural a faculdade de passar da teoria à prática. É muito mais simples do que se imagina.
A meditação sobre os quatro pensamentos ilimitados
Quando, pelo hábito da prática, se oferece uma perspectiva sem limites ao amor, à compaixão, à alegria e à equanimidade, podemos legitimamente falar de «quatro pensamentos ilimitados». De facto, em lugar de reduzir o seu alcance a um pequeno grupo de indivíduos, aumentamo-la a fim de incluir um número infinito de seres; em lugar de a confinar à vida presente, estendemo-la às vidas que virão. É assim que se cultiva o aspecto sem limites destes sentimentos. O facto de se treinar primeiramente em sessão de meditação traz um suporte indispensável ao desabrochar dos quatro pensamentos ilimitados.
Depois de ter adoptado a boa motivação, expulsado o ar viciado, e estabilizado o vosso espírito pela alternância de concentração e de descanso, meditem sobre o amor, a compaixão, a alegria e a imparcialidade. Podem escolher aprofundar um tema por sessão, ou consagrar alguns minutos a cada um deles no decurso da mesma sessão. Utilizem a vossa respiração: inspirem primeiro as vagas luminosas de bênçãos dos seres despertos e a essência subtil dos cinco elementos, assim como a sabedoria e a compaixão dos budas dos três tempos. Sintam esta luz fazer parte de vós, enchendo o vosso corpo até à mais pequena célula; um calor que faz bem conquista-vos. A luz transmuta todo o sofrimento e restabelece o equilíbrio onde houver uma fraqueza. Isto confere-vos a força de desenvolver o pensamento ilimitado sobre o qual estão a trabalhar equilibrando as energias subtis. A alegria invade-vos. Inspirem de seguida o sofrimento dos seres e depois expirem, derramando sobre eles, sob a forma de luz, o pensamento que tiverem cultivado.
Utilizamos por vezes esta técnica de maneira específica, por exemplo para ajudar uma pessoa doente. Considera-se que a luz inunda e dissolve todos os seus males. Mas é importante antes de mais trabalhar de forma mais abrangente, fazendo raiar a luz em todos os seres. Concentrem-se em primeiro lugar na expiração: com a respiração, enviem vagas de luz que se expandem no início sobre aqueles que nos rodeiam, depois estendendo-se progressivamente até penetrar com a sua claridade os confins do universo.
Deixem a seguir que o espírito repouse dentro do seu estado de limpidez e de simplicidade, sem conceitos de sujeito, de objecto e de acção. Fiquem alguns instantes na pureza perfeita do estado natural do espírito. Depois concluam dedicando o tempo e a energia investidos nesta meditação a todos os seres sem excepção.
Progredirão nesta prática se consagrarem diariamente um ou vários períodos que vão de alguns minutos a uma meia hora. O ponto essencial consiste em exercitar-se primeiro na sessão de meditação, para se fixar a seguir a fazer ressurgir o mesmo estado de espírito na vida corrente. Com este método, a paz interior e a força de abordar serenamente todas as circunstâncias da vida não deixarão de se desenvolver.
Esta oração tradicional de uma grande força é excelente para concluir toda a meditação:

O espírito de despertar é a mais preciosa das jóias:
Engendremo-lo se a coisa não estiver já feita;
Depois de engendrado, que ele nunca enfraqueça
Mas não cesse de se intensificar.
Possam todos os seres progredir até ao nível do despertar total!



A bodhicitta absoluta: para além do sujeito, do objecto e da acção
No início do treino para o espírito de despertar, trata-se com amor os seres que têm necessidade de ternura e de calor humano. Neste estado, considera-se que existe um sujeito (o próprio), um objecto (o destinatário da acção) e uma acção (a acção altruísta). Experimenta-se aplicar da mesma maneira a compaixão, a alegria e a equanimidade a todas as situações da vida corrente. Uma pessoa tem fome, por exemplo? Damos-lhe de comer. Ela tem frio? Tentamos aquecê-la. Ela tem necessidade de roupas ou de consolo? Esforçamo-nos para lhos dar ... Não é inútil agora manter estes três conceitos (sujeito, objecto e acção) presentes na mente. É preciso pelo menos saber que eles provêm do nível relativo, e que no final eles deverão ser transcendidos.
No momento de avaliar a sua atitude e a sua acção. O «sujeito» pode dizer: «Eu hoje servi para alguma coisa, que formidável! Pude verdadeiramente ajudar alguém...» e sentir uma grande alegria. Essa alegria tem o seu valor naquilo que ela reforça a energia na nascente de tais acções. Mas não caiamos todavia na armadilha que consiste em se crer o único a bem agir, o único que tenta verdadeiramente ajudar os outros. Sob a aparência duma atitude positiva, produzir-se-ia agora uma energia negativa subtil: uma forma de orgulho quase imperceptível que virá diminuir a acção positiva.
Agir com amor ou compaixão sem estar consciente das nossas intenções subjacentes pode constituir uma outra armadilha. Com frequência fazemos prova de bondade, mas de uma certa maneira esperamos o reconhecimento. Se a nossa «B.A.» não é suficientemente apreciada, nós temos a impressão de estarmos expostos à ingratidão. Uns indignam-se, outros irritam-se. Eis como uma espera interessada pode, ela também, alterar um acto positivo.
Se é seguramente útil distinguir o sujeito, o objecto e a acção, o essencial acaba por ser o não deixar-se apanhar pela armadilha do orgulho e da esperança. Seria preciso poder fazer o bem de maneira natural, sem estar agarrado pelas noções de sujeito, objecto e acção.
Conta-se que outrora existiam excelentes mágicos que dominavam a sua arte ao ponto de poder produzir ou transformar uma quantidade de coisas. Enquanto que eles se não deixavam apanhar pelo seu próprio jogo, eles mantinham a capacidade de projectar toda a espécie de ilusões que encantavam a multidão de espectadores. Um bom mágico sabia alegrar-se da beleza que ele oferecia ao público mantendo-se consciente do seu carácter ilusório, ao qual ele não se agarrava. Diz-se que a partir da crina de um soberbo cavalo ou do cabelo de uma jovem deslumbrante, alguns mágicos podiam fazer aparecer o cavalo ou a menina em tudo iguais ao original. Mas atenção ao mago que fosse tomado do desejo de querer montar o cavalo-ilusão ou de casar com a menina-miragem! Ele teria pura e simplesmente dissipado a sua arte.
É melhor não imitar os maus mágicos. Deixem desabrochar na espontaneidade os actos úteis aos amigos, à família e aos outros seres, sem expectativa ou cálculo, sentindo apenas a alegria de agir assim. A acção inspirada por uma tal atitude só pode ser bem sucedida. Pelo contrário, mesmo um bonito gesto verá o seu resultado falseado se o seu autor se prender às noções de sujeito (ele mesmo), destinatário e de acção executada.
A introspecção permite ultrapassar os limites que se impõem nestas três noções. Se nós pensamos: «Eu fiz uma acção positiva», procuremos esse eu. O que é o eu? Quem é ele? Onde mora ele? Dentro do corpo? Nós afirmamos ter um nome e um corpo, e consideramos que o eu reside dentro desse corpo. Analisemos quem é o proprietário do nome e do corpo. Acabaremos por concluir que o eu é talvez o espírito.
Se assim for, o que é o espírito? Será o desenrolar de pensamentos relativos ao passado, presente e futuro? Levemos a nossa análise um pouco mais longe. Os pensamentos passados não podem ser o eu. Tão pouco podem os pensamentos futuros e os pensamentos presentes. Porquê? Os pensamentos passados são como um cadáver, o que sobra dele? Dos nossos pensamentos de ontem e de toda a hora não sobra senão uma lembrança, como pelos mortos. Quanto aos pensamentos futuros, eles não existem ainda e são-nos desconhecidos. Nós teremos eventualmente deles uma leve ideia, mas na realidade ignoramos quais as vagas de pensamentos que se irão manifestar num ou noutro instante, pois eles não são ainda nascidos. Quanto aos pensamentos presentes, podemos dividi-los em presente-passado, presente-presente e presente-futuro, e de novo em passados, presentes e futuros. Podemos em verdade aplicar-lhes uma noção de identidade permanente dizendo: «Este é um pensamento»?
Continuemos a análise. O que resta? Um estado de atenção e de liberdade, um estado no qual a mente está às vezes alerta e calma. Mas nós não conseguimos quase ficar neste estado de liberdade total da mente se estivermos convencidos de que existem pensamentos passados, futuros e presentes e que eles têm um valor. De facto, aquilo que nos perturba e nos impede de ir além, é de ficar agarrados à memória de pensamentos do passado, de querer prender pensamentos que ainda não se manifestaram e de nos quedarmos em pensamentos do presente. Uma tal investigação mostra a importância de atingir um nível muito profundo da consciência, que nós chamamos de a consciência desperta, livre de toda a obstrução.
Voltemos à análise e consideremos agora o nome. Para comodidade social, cada um traz um nome. Ele designa-nos e nós podemos assim dizer que possuímos um nome. Mas o que é este nome? O nome David, por exemplo, não é mais do que um conjunto de letras. Separamos os diferentes caracteres D, A, etc. que o compõem, onde está então o nome? Habitualmente, juntamos um grupo de sílabas, depois conceptualizamos: «Isto é o meu nome». Separemo-lo em diferentes sons, e o nome desaparece. Todavia, antes de termos recebido um nome, não existíamos? E quando mudamos de nome, o que se passa?
Continuamos o nosso exame: «Eu, eu fiz esta boa acção», dizemos para nós mesmos apontando com o dedo o nosso peito, como se uma entidade sólida aí se encontrasse. Analisamos e verificamos. Onde então reside esse eu? Na nossa mão, na parte superior do nosso corpo, na sua parte inferior? Este corpo é composto de diferentes agregados. Decomponhamo-lo nas suas partes constituintes; subdividamo-las até ao infinitamente pequeno; não existe mais entidade sólida, não sobra senão um campo de energia. É impossível apontarmos o dedo sobre o que quer que seja afirmando: «Isto sou eu».
Aplicando o mesmo método ao beneficiário da acção, chegamos novamente a um campo de energia, e a ausência de toda entidade substancial torna-se evidente. Pelo hábito de analisar desta forma, desembocamos de repente num estado de liberdade, um estado virgem de conceitos de entidade sólida «sujeito-objecto-acção».
Dilgo Khyentsé Rinpotché disse a esse propósito:

Realizar a vacuidade autêntica, é realizar a bodhicitta absoluta. Não
há mais nada a fazer que ficar nesta simplicidade primordial, livre
de toda a elaboração e actividade conceptuais.

Alguns objectarão: «Mas então, porquê agir positivamente se não existe nenhuma entidade sólida sujeito-objecto-acção?». Num plano relativo, o sujeito, o objecto e a acção existem. É por isso que deveríamos imitar o bom mágico; saibamos regozijar e apreciar o poder agir, mas evitemos crer no sujeito, agarrar o objecto e implicar-nos exageradamente na acção. Ajamos espontaneamente com confiança e alegria, sem abrir a porta às emoções perturbadoras. Aliada à alegria, uma intenção positiva e espontânea dissolve os bloqueios do corpo e do espírito permitindo às coisas o desabrochar naturalmente.
A propósito desta análise, uma outra pergunta pode ser posta: «Negar a existência do sujeito, do objecto e da acção, não será niilismo?». De forma alguma. O espírito de despertar, donde jorram amor, compaixão, alegria e equanimidade, é a base de tudo, a primeira nascente. É um campo de energia extremamente poderoso. Ao mesmo tempo, ele é intangível, e difere nisso da percepção muito concreta que nós temos da miragem sujeito-objecto-acção. É por isso que, desde que tenhamos receio de percorrer o caminho errado, é essencial virarmo-nos para o exame e a análise para chegarmos à nascente: o espírito de despertar.
Alternando contemplação e análise, consegue-se desenvolver um amor, uma compaixão, uma alegria e uma equanimidade sem fronteiras. Dissemos já que era de importância capital cultivar desde o começo os quatro pensamentos ilimitados na sessão de meditação. Mas o que entendemos por meditação? Isso é exclusivo dos praticantes experientes? Não verdadeiramente. Também não é necessário ir a um templo ou a um mosteiro, ou ainda de se encontrar na presença de qualquer alta personalidade espiritual. O termo tibetano correspondente ao verbo «meditar» significa de facto «acostumar-se a». Trata-se por consequência de um exercício onde habituamos a mente a encontrar e a manter o seu estado de espontaneidade, de bondade e de frescura naturais, esse estado que os pensamentos não podem perturbar e que propaga a harmonia e a benquerença.



As seis transcendências
Fora das sessões de meditação, e para melhor integrar os quatro pensamentos ilimitados na vida quotidiana, apoiamo-nos nas seis paramitas ou acções transcendentes: a generosidade, a disciplina mental, a paciência, a perseverança, a concentração e a sabedoria.
A generosidade
O dom material não é mais do que um dos aspectos da generosidade. Ser generoso é também e sobretudo consagrar tempo e energia a outrem. Na prática espiritual, isto significa agir com equanimidade, amor, compaixão e alegria, adoptando uma perspectiva imensamente aberta. De acordo com o tempo e a energia que dispomos, fazemos todos os possíveis para responder às necessidades de cada um. É preciso começar de forma comedida e desenvolver progressivamente a faculdade de partilhar. Tentar, dum golpe inicial ultrapassar as suas capacidades, é arriscar, em caso de insucesso, experimentar amargura e arrependimento. A generosidade torna-se «transcendente» quando ela é livre de conceitos de sujeito, de objecto e de acção. É esta liberdade que permite realizar actos verdadeiramente benéficos.
A disciplina mental
A disciplina mental, que previne as acções negativas, ajuda a actualizar os quatro pensamentos ilimitados. Trata-se em primeiro lugar de conhecer as causas e os efeitos das acções do corpo, da palavra e do espírito, depois de ter uma consciência justa dos nossos próprios actos negativos e dos resultados que daí resultam.
As acções negativas do corpo são: tirar a vida de outrem; tirar aquilo que não é dado; procurar o seu próprio prazer à custa de outrem.
As acções negativas da palavra são: mentir; semear a discórdia; ter palavras duras, desagradáveis, grosseiras ou que firam a outrem; falar para nada dizer.
As acções negativas do espírito são: o desejo ardente, a malquerença e as vistas erradas.
As acções negativas produzem fatalmente efeitos negativos, é importante que tenhamos consciência disso, a fim de as evitar, sobretudo logo que tenhamos decidido cultivar a bodhicitta. É impossível dar ao espírito de despertar o crescimento necessário se continuarmos a praticar actos de violência: os actos negativos do corpo, da palavra e da mente, sejam eles quais forem, devem ser abandonados. A primeira etapa da disciplina é tomar consciência do que era negativo, a segunda é tomar uma resolução muito firme de tudo fazer para não agir de maneira negativa. Na vida quotidiana, é preciso em particular evitar todo o acto de prejudicar a vida a outros seres. É certo que talvez não façamos mal aos seres humanos mas acontece ferirmos ou matarmos animais ou insectos... É melhor saber que essas são acções muito negativas, que têm por efeito reduzir a energia vital do seu autor e abreviar assim a sua vida. Alguns encurtam a existência dos animais unicamente pelo prazer; há porém muitas outras maneiras de ter prazer, sem prejudicar a vida.
Quanto ao roubo, se certas coisas nos faltam, nada de nos impede de pedi-las emprestado.
No que se refere aos actos negativos da palavra, é frequente proferirmos palavras sem mesmo saber o que dizemos. Acontece por exemplo fazermos troça ou, sem verdadeiramente pensar no mal, ter brincadeiras que ferem ou semeiam a discórdia. Isto deve ser absolutamente corrigido.
A disciplina mental torna-se transcendente a partir do momento quando, agir com altruísmo não suscita nenhum orgulho. Não se trata de dizer: «Eu vou adoptar tal atitude com tal pessoa. Eu, eu faço bem as coisas...». É preciso ir além dessas limitações e viver a disciplina mental com desapego; agora só ela pode ser considerada transcendente.
A paciência
A paciência, ou tolerância, é um assunto muito vasto. Na vida, as pessoas são capazes de suportar muitas coisas, mas bastante mais raramente aquelas que se referem ao essencial. Observemos bem: acontece-nos fazer prova de uma paciência notável em domínios completamente inúteis. Consagramos horas e horas a coisas que não terão qualquer resultado positivo, seja para nós ou para os outros. Seria tão bom se pudéssemos fazer prova de uma paciência igual naquilo que é importante e benéfico a outrem!
Uma paciência autêntica é indispensável para cultivar os quatro pensamentos ilimitados. Sem ela, o primeiro esforço que exigirá a aplicação da nossa aspiração ou a primeira dificuldade que surgir parecer-nos-á intransponível e entravará a nossa progressão. É preciso também abrir um campo ilimitado a esta tolerância, livre de toda a influência dos três conceitos de sujeito, de objecto e de acção.
A perseverança (ou diligência)
A palavra perseverança comporta numerosas acepções. No quadro das seis paramitas, ela designa principalmente a atenção investida naquilo que fazemos. A perseverança desenrola-se naturalmente naquele que sinta a alegria de realizar aquilo a que se propôs. Sem esta alegria, ela perde a sua força e extingue-se rapidamente.
Quando este interesse toma para seu aliado uma forte determinação, é então fácil levar uma actividade a bom cabo. A perseverança é absolutamente necessária a quem deseja integrar o amor, a compaixão, a alegria e a equanimidade na sua vida quotidiana. Aquele ou aquela que a toma como armadura pode mobilizar as forças e defrontar todas as dificuldades a fim de viver de acordo com a sua aspiração.
A concentração
A concentração é também chamada de contemplação, ou por vezes de meditação. Seja qual for o nome que lhe damos, trata-se, neste contexto, da atenção focalizada num único ponto. A concentração constitui ela também um suporte fundamental no nosso esforço de incorporar os quatro pensamentos ilimitados na vida de todos os dias; ela permite estar consciente sem se distrair do objectivo.
A sabedoria
A sabedoria comporta numerosos aspectos dos quais a consciência adquirida pela escuta, a adquirida pelo estudo, e a sabedoria nascida da meditação.
Pela escuta ou a leitura de ensinamentos, adquire-se um conhecimento teórico ou intelectual. Mas é preciso ir mais longe; a segunda etapa é a reflexão sobre aquilo que ouvimos ou lemos. É ela que permite assimilar o sentido dos ensinamentos. A terceira etapa, a prática da meditação, faz nascer a seguir um conhecimento límpido e luminoso - a sabedoria da meditação. A certeza muito clara e profundamente enraizada que se eleva agora do interior permite pôr em acção aquilo que compreendemos. Esta sabedoria ou conhecimento supremo desabrocha num plano intuitivo; ela não é de ordem intelectual. O intelecto é certamente útil no começo, mas é a experiência da meditação que é capital. Ela sozinha pode transformar em certeza aquilo que à partida não era mais do que compreensão.
A sabedoria serve de suporte à generosidade, à disciplina, à paciência, à perseverança e à concentração. Diz-se que ela representa os olhos de cinco outras acções transcendentes; sem sabedoria, as outras transcendências são cegas. Por outro lado, a sabedoria não pode passar sem as pernas, que são esses cinco meios hábeis. O treino quotidiano dos quatro pensamentos ilimitados exige que se pratique conjuntamente as seis transcendências.
Resumindo, para cultivar a mente desperta, abramos amplamente a nossa própria mente. Engendremos a atitude desperta com a ajuda dos quatro pensamentos ilimitados, tomando logo de início a consciência da importância de todos os seres, amigos ou não, que numa ou noutra vida foram a nossa mãe. Apreciemos as suas qualidades e pensemos na sua bondade a partir deste momento com reconhecimento. Tentemos pôr em prática a mente de despertar com a ajuda das seis transcendências. Encurtando, insuflemos uma intenção positiva ao menor dos nossos actos, concentremo-nos naquilo que fazemos, seja em meditação ou na vida quotidiana, e para terminar, dediquemos o fruto do despertar último à felicidade durável de todos os seres.



3.3 - A PRÁTICA DE VAJRASATTVA, ANTÍDOTO DA AVERSÃO


A prática do refúgio é o antídoto do orgulho e permite dissipar os véus subtis e menos subtis, agora que a prática da mente desperta age como antídoto da inveja. Para subjugar a aversão sob todas as suas formas (cólera, agressividade, violência e outras), o conjunto de práticas já descritas é absolutamente excelente; entretanto, a do buda Vajrasattva revela-se a mais eficaz. Ela contribui também para entravar a acção das novas doenças que punem os nossos dias.
No século oitavo, o grande mestre Padmasambhava (11) tinha já predito que, na nossa época, a proliferação de armas e de tecnologias produziriam poluições de todas as espécies, favorecendo assim a aparição de doenças desconhecidas, muito difíceis de tratar. É por isso que grandes mestres contemporâneos, tais como Dudjom Rinpoché e Khyentsé Rinpoché, aconselharam com frequência a prática de Vajrasattva a pessoas em fase terminal de doenças como o cancro. De maneira inexplicável para os seus médicos, elas viveram muito mais tempo que era suposto.
Por outro lado, apoiando-se em técnicas ligadas à meditação sobre Vajrasattva, é possível transformar as dificuldades relacionais que agitam a vida familiar, social e profissional. De facto, estes problemas advêm de diferentes bloqueios ou desequilíbrios ligados ao plano subtil que são sensíveis ao mantra de Vajrasattva.
A prática de Vajrasattva está fundada em quatro forças:
(1) A primeira, a força do suporte da concentração, consiste em visualizar sobre a nossa cabeça a forma radiosa de Vajrasattva, branco ou transparente como um cristal. Cada cor tem um efeito importante sobre o espírito; a cor branca é frequentemente utilizada nas práticas de pacificação ou de purificação. Aqueles que têm o hábito ou a faculdade podem visualizar em detalhe o ser desperto, mas saibam que o mais importante é sentir a sua presença.
(2) Segue-se a força do reconhecimento. Através de uma introspecção relativa à forma como vivemos até ao presente, procuramos e reconhecemos as causas das doenças e das dificuldades reencontradas. Esta análise traz à luz os actos benéficos que temos a nosso favor, mas ela mostra também o mal causado a outrem no decorrer da nossa existência, por vezes inconscientemente, outras vezes com consciência. Como disse Khyentsé Rinpoché:

Consideremos quantos pensamentos de ignorância, de cólera, de desejo, de inveja e de orgulho surgem em nós no espaço de um dia. O karma negativo que nós rebocamos é muito pesado, pelo facto de termo-nos deixado estar durante numerosas vidas em actividades principalmente negativas. Se tivéssemos feito prova de outro tanto de perseverança em actividades positivas, seríamos já budas.

Não serve para nada deixarmo-nos torturar pelo remorso. Ao contrário, é indispensável aceitar e tomar consciência dos nossos actos, de reconhecê-los e de compreender que uma acção negativa não pode jamais dar outra que não um resultado infeliz. Se, no decurso da nossa introspecção, os actos da vida presente não explicarem tudo, é porque esta vida não é a única, já houve tantas outras. Recordemo-nos, este corpo é como um quarto dum hotel. Tal como um viajante que vai de um para outro albergue, o nosso espírito muda de corpo de vida em vida... Por vezes é necessário recuar muito longe no tempo para encontrar a razão verdadeira dos acontecimentos que marcam a nossa vida actual. Quando a introspecção se desenrola no estado de simplicidade e de claridade da mente, alguns podem ter uma intuição exacta das causas daquilo que lhes sucede. Também podemos apelar à clarividência de um grande mestre.
(3) A terceira força é a da purificação. Reconhecer as causas dos problemas não chega, ainda falta purificar o conjunto do processo causas-efeitos servindo-se de técnicas baseadas na visualização e nos mantras que serão referidos mais adiante.
(4) A quarta força é a determinação: decidimos de maneira irrevogável rejeitar como um veneno mortal todo o acto negativo, mesmo que ela pareça insignificante.


A visualização
O texto dos Preliminares do Novo Tesouro introduz assim a prática:
Na parte mais alta da minha cabeça, encontra-se o mestre, inseparável de Vajrasattva, Do seu corpo correm rios de néctar, que purificam todas as minhas impurezas.
Em cima de vós, sobre um lótus desabrochado, está o disco de uma lua cheia. Visualizem sobre esta lua radiosa, cristalina, o buda Vajrasattva, essência e manifestação de todos os seres despertos do passado, do presente e do futuro... Vajrasattva detém também a essência subtil de todos os elementos. Concentrem-se com uma total confiança e sintam a sua presença. Reconheçam a seguir todos os actos negativos que causaram os vossos sofrimentos e os de outrem. Tendo assim estabelecido aquilo que há para ser purificado, repousem sobre a visualização de Vajrasattva e pratiquem a purificação.
A recitação do mantra da purificação
Existem numerosos mantras associados a esta prática. O mantra das cem sílabas é o mais utilizado, por causa da sua eficácia em termos de purificação e de cura. O mantra de Vajrasattva em seis sílabas aplica-se a uma recitação mais condensada. Durante o processo de purificação, quer recitem um ou outro mantra, concentrem-se sobre o néctar que se propaga em vós.
Visualizem no centro do coração de Vajrasattva a sílaba-semente Hung, rodeado das seis sílabas Om Vajra Sattva Hung, ou das cem sílabas. Numa primeira fase, visualizem claramente cada sílaba, depois entoem o mantra. Podem cantá-lo, recitá-lo ou pronunciá-lo mentalmente.
A repetição destes mantras age sobre diferentes partes e centros do corpo. Em tibetano, o desenho da sílaba Om, por exemplo, é composto de três elementos. A ressonância destes três elementos reunidos abre os diferentes centros do corpo. Cada uma das outras sílabas tem, também, um efeito sobre os pontos energéticos do nosso corpo. As seis sílabas do mantra curto estão em relação com as cinco emoções perturbadoras, às quais se junta a avidez, e também com os seis reinos de existência. Para dar um breve ideia dos seus sentidos, Om representa a essência do aspecto corporal de todos os seres despertos; Vajra (em sânscrito, ou ‘’Benzar’’ de acordo com a pronúncia tibetana) significa indestrutível, Sattva o ser e Hung a realização.
A concentração sobre a visualização e a recitação do mantra fazem brotar do coração de Vajrasattva e do círculo das sílabas uma imensa quantidade de raios de sabedoria bem como um néctar límpido. O néctar misturado com a essência dos cinco elementos enchem a forma do ser desperto até transbordar dele e derramar-se em vós pela fontanela. Uma vez o chakra da cabeça completamente cheio, o fluxo luminoso que continua a correr propagando-se dentro de todo o vosso corpo. À medida que o néctar corre, ele purifica tudo à sua passagem, desfazendo os diferentes bloqueios e restabelecendo a harmonia.
O poder desta torrente põe em movimento todas as impurezas do corpo, da palavra e da espírito, que são eliminadas pelas aberturas maiores e menores do corpo, bem como por todos os poros da pele. De esta maneira são evacuadas as toxinas provenientes de produtos que por vós foram absorvidos, os resultados dos vossos actos negativos (causas de doenças físicas e mentais), os pensamentos geradores de energia negativa (assimilados a forças negativas) e os véus subtis da mente.
Entremos mais em detalhe. Considerem em primeiro lugar que este néctar misturado com luz lava completamente o vosso corpo de toda a forma de doença, latente ou declarada, rejeitada sob a forma de sangue apodrecido e pus. Quanto mais a sujidade sair, mais o néctar corre. Depois vejam as forças negativas que vos deixam sob o aspecto de monstros e de insectos horríveis. A torrente luminosa persegue até à mais ínfima destas formas, que não são mais que o produto dos vossos pensamentos negativos. Seguidamente, os resultados e as marcas das acções negativas são eliminadas pelas aberturas maiores e menores e pelos poros da pele. Eles escapam-se como uma matéria escura e espessa, preta pelas acções negativas graves, cinzenta pelos conceitos, mais subtis. Recitando sempre o mantra, concentrem-se com atenção até sentir que o vosso corpo se tornou perfeitamente transparente e límpido. Tudo em vós reencontra uma claridade cristalina.
A dissolução
O texto continua:
Fundindo na luz, ele mistura-se com o meu ser num e mesmo sabor.
Para terminar, considerem que Vajrasattva se dissolve em luz. Esta propaga-se em abundância progressivamente em vós: penetrando pela fontanela, ela atravessa sucessivamente, inundando de bem-estar, os chakras da fronte, da garganta, do coração e do umbigo. Tentem sentir as quatro experiências de alegria, de felicidade, de grande felicidade e de felicidade extraordinária. Para terminar, a luz de Vajrasattva enche-vos completamente; misturados indissoluvelmente no vosso corpo, palavra e espírito, ela purifica até planos dos mais subtis no vosso ser. Agora, o vosso corpo, a vossa palavra e a vossa espírito não são mais do que um com os três aspectos do ser desperto. Apercebem-se do vosso corpo sob a sua verdadeira forma: um corpo de luz, diáfano e radioso. Estando totalmente identificados com Vajrasattva. Recitem as seis sílabas. Do centro do vosso coração jorra em todas as direcções uma abundância de raios luminosos predominantemente brancos. Penetrando um número infinito de seres, eles apagam os seus bloqueios físicos e mentais, e purificam-nos perfeitamente. O universo e os seres fundem-se em luz. Fiquem simplesmente neste estado de claridade.



Alguns conselhos
A sessão de prática pode durar mais ou menos tempo, mas seja qual for o tempo que a ela consagrarem, o que importa, é assimilar a essência da prática. Eis aqui alguns conselhos que vos poderão ajudar.
No fim da primeira fase, que se apoia na recitação e no derramar ininterrupto de néctar, tentem sentir que estão completamente purificados e que o vosso corpo, lavado de todas as doenças vividas ou potenciais, está transparente como um cristal, tal como o do buda Vajrasattva. Adoptem agora uma determinação inquebrantável, formulando de todo o vosso coração o voto de nunca mais cometer uma só acção negativa.
Quando a forma de Vajrasattva se dissolve em luz que se propaga em vós, pensem que as bênçãos do corpo do buda vos enchem. Logo que esta luz atinja o centro da vossa fronte, considerem que o vosso corpo, perfeitamente purificado, torna-se tão indestrutível como o diamante. Depois a luz desce dentro do centro da garganta, e todas as palavras negativas que puderam pronunciar são totalmente purificadas. Recebem as bênçãos da palavra do buda: a vossa palavra torna-se tão indestrutível como o diamante, toda a palavra que pronunciarem será benéfica e positiva. A luz desce dentro do centro do coração. Recebem as bênçãos da mente do buda, tudo o que vela a sabedoria dissolve-se. A vossa mente torna-se diamante indestrutível, nenhum pensamento vulgar poderá influenciar-vos. É a iniciação à sabedoria perfeita. Quando a luz atinge o nível do umbigo, os véus mais subtis das tendências habituais desaparecem.
Recebem assim as bênçãos do corpo, da palavra e da mente de Vajrasattva, e tornam-se um com o ser desperto. A experiência da vacuidade-sabedoria nascida desta união com o ser desperto faz brotar espontaneamente em vós uma compaixão sem limites. Ela brilha a partir de Hung dentro do vosso coração e de todos os poros da vossa pele. A claridade propaga-se até aos mais pequenos recantos da sala, propagando-se na cidade, no país... O planeta inteiro está inundado por esta luz que dissipa doenças e sofrimentos e pela poderosa compaixão transforma os seres dos seis reinos de existência: os seus corpos tornam-se tão transparentes como o cristal mais perfeito; os seus gritos de dor transformam-se em sons do mantra; o seu espírito, livre de toda emoção conflituosa, não é mais que claridade.
O universo, metamorfoseado em luz, reabsorve de fora para dentro até que vós, Vajrasattva, que funde por sua vez na sílaba Hung. Esta dissolve-se em luz de baixo para cima para desaparecer no espaço. Tudo é vacuidade, sabedoria. Deixem a vossa mente repousar algum tempo no seu estado de limpidez natural.
Para concluir, pensem oferecer os méritos desta prática à felicidade de todos os seres e à sua libertação última.
Esta meditação, que transforma a cólera em sabedoria, pode tornar-se a vossa prática quotidiana, Recorre-se igualmente a ela em circunstâncias particulares, logo que alguém próximo de nós fica doente, por exemplo. Existem neste caso duas maneiras de proceder. Ao mesmo tempo que o néctar é derramado em nós e nos purifica, ele se propaga também na pessoa doente e a purifica. Ou então, apliquem primeiro a vós a prática da purificação, e em seguida, quando se tornam Vajrasattva, inundem o doente com uma luz que purifica todos os seus sofrimentos. Normalmente, antes de utilizar estas técnicas para ajudar a outrem, é conveniente exercitar-se sobre si mesmo, pois é necessário que antes se familiarizem com a prática e adquiram uma certa habilidade.

3.4 - A OFERENDA DO MANDALA, ANTÍDOTO DO APEGO
Com frequência, somos escravos de objectos que acumulamos. Uns são indispensáveis, mas a maior parte só servem raramente; um dia eles fizeram-nos sentir desejo e hoje nós não sabemos onde metê-los.
Em certas regiões do Tibete, até recentemente, cada um podia alimentar-se de frutos selvagens que cresciam em abundância. Agora é preciso trabalhar , pois tudo se compra e tudo se vende. O mundo inteiro entrou num círculo vicioso: desejar, comprar, trabalhar. A variedade dos produtos existentes e uma publicidade excessiva dão-nos vontade de comprar tudo. A nossa sede de possuir é tão grande que rapidamente os nossos apartamentos tornam-se exíguos. Apesar do peso desses bens na nossa vida, nós acumulamos sempre mais. Os ensinamentos insistem neste ponto: as nossas necessidades são simples, mas os nossos desejos são infinitos; aí está uma nascente de grandes dificuldades.
A prática da oferenda do mandala, antídoto do nosso apego às possessões e aos nossos desejos ilimitados, comporta muitos aspectos. O aspecto formal da oferenda consiste em dispor grãos, plantas medicinais e pedras preciosas ou semipreciosas de acordo uma construção precisa. Esta prática visa pacificar os três sofrimentos maiores (fome, guerras, epidemias) que afligem os seres em numerosas regiões do planeta. Oferecemos portanto aos seres despertos oferendas simbólicas: os grãos para cortar a avareza que causa a fome, as plantas medicinais para suprimir a ignorância que faz nascer as doenças, e as pedras preciosas ou semipreciosas para pôr fim ao desejo ardente misturado com a agressividade, que provoca as guerras.
Fora das sessões de prática, aplicamo-nos a integrar a generosidade na nossa vida quotidiana, por exemplo dando de comer àqueles que têm fome. Treinamo-nos também a oferecer mentalmente aos budas tudo o que vemos de agradável. Vemos belas flores ou bons frutos? Ofereçamo-los em pensamento aos seres despertos, a fim de que eles repartam a essência com aqueles que tiverem realmente necessidade. Associemos a oração do mandala a este pensamento.
A maneira de rezar, as visualizações e a maneira de suprimir o sofrimento dos seres compreendem numerosos detalhes que encontraremos expostos no segundo capítulo da obra de Patrul Rinpoché, traduzida em francês sob o título de ‘’Le Chemin de la Grande Perfection’’. Para uma prática simples, podem fazer referência ao texto dos Preliminares do Novo Tesouro:

Na sucessão das minhas vidas, meu corpo, minhas possessões
e tudo o que me glorifica,
Eu os ofereço às Três Jóias a fim de acumular perfeitamente
mérito e sabedoria.

Em geral, desde que se deseje uma coisa, sentimos uma frustração, e quanto mais desejamos, mais a sensação de falta aumenta. Praticar a generosidade com a oferta do mandala ensina a abandonar esta avidez e a satisfazer-se com a simplicidade; torna-se mais fácil de satisfazer as suas necessidades fundamentais. Aqueles que têm poucas necessidades têm a liberdade da mente à mão de semear.
Na prática do mandala, aquilo que conta, bem mais do que os grãos ou as pedras preciosas que oferecemos, são os bons pensamentos, mesmo que seja um único. Ofereçamos a nossa abertura de coração, as nossas impulsões altruístas e todo o bem conseguido até este dia; doemos aos budas todos os actos benéficos do nosso corpo, nossa palavra e nosso espírito. Oferecer-lhes o mandala, é também pedir-lhes que abençoem os inumeráveis seres, a fim de que todos se libertem do apego e da avidez, fontes de situações incrivelmente dolorosas e complexas.
Podemos perguntar-nos para que serve oferecer aos seres despertos a abertura de coração que é a semente do despertar? Terão eles necessidade disso? Não mais do que a terra precisa da semente da macieira. São aqueles que apreciam e comem as maçãs que terão necessidade das sementes. Mas dar-lhes apenas as sementes não mitiga a sua fome, desde que semeadas em terra fértil, estas tornar-se-ão macieiras que, a cada outono, se carregarão de frutos. Os seres despertos são um campo sempre fértil, e semear aí a semente do despertar será fecundo para todos os seres.
Aliás, mesmo a oferenda material não se limita aos objectos que oferecemos. Imaginamos o que os grãos simbolizam. Ao mesmo tempo que os dispomos no prato do mandala, oferecemos o universo exterior e a nós mesmos como o universo. Os nossos quatro membros são os quatro continentes, os cinco dedos os sub-continentes, os órgãos são as divindades da oferenda, e assim por diante. No plano subtil, oferecemos as oito consciências (12), as cinco sabedorias (13) ...
Tentamos imaginar as oferendas sob a sua forma subtil e luminosa. De facto, é a sua essência que oferecemos. Esta prática tem por objectivo habituar o praticante a tomar consciência de que, tal como um grão não se limita à sua aparência de grão, cada ser e cada objecto de percepção comporta aspectos cada vez mais subtis (átomos, partículas, vacuidade, luminosidade...). O mandala apresenta-nos assim a «visão» (Tradução literal do tibetano lta ba: visão autêntica, no sentido de conhecimento imediato do verdadeiro modo de ser das coisas) da sabedoria. De facto, esta prática refere-se a dois aspectos da omnisciência dum buda: o conhecimento infalível da natureza absoluta de todas as coisas, e o conhecimento ilimitado da totalidade dos fenómenos.

3.5 - O YOGA DO MESTRE, ANTÍDOTO DA IGNORÂNCIA
Todas as práticas que já vimos agem com eficácia contra a ignorância, cujo antídoto específico se encontra na prática do yoga do mestre. A nossa ignorância é tal que não temos consciência da simplicidade natural da nossa mente: ela está escondida por diferentes véus. A prática deste yoga permite-nos reencontrar o estado primordial da nossa mente dissipando todos os véus que a ocultam.
O que é uma «preciosa existência humana»?
Não é concebível atingirmos um objectivo tão nobre sem a ajuda de um corpo. Aliás, é necessário pertencer à espécie humana para atingir a libertação no decurso da sua vida. A condição humana tem um grande valor, pois só ela permite a realização pessoal e o devotamento perfeito a todos os outros.
Ora, para beber uma simples chávena de café, por exemplo, não é preciso reunir todo um conjunto de elementos indispensáveis como a água, o café, o fogo, um recipiente? Se uma dessas coisas faltar, não vai haver a pequenina chávena de café! Agora, se é preciso combinar tantos ingredientes para fazer qualquer coisa assim tão simples, percebemos melhor que, para aqueles que desejam avançar na via do despertar espiritual até à libertação última, os ensinamentos dão com precisão a importância de uma vida humana provida de oito liberdades e de dez condições favoráveis. Uma existência que reuna todas estas qualidades não sendo vulgar, qualificamo-la como «preciosa existência humana».
É muito útil verificar com regularidade se estamos, ou não, de posse de cada uma destas dezoito qualidades. Vejamos em primeiro lugar as oito liberdades. Somos «livres» desde que não nos encontremos em qualquer das oito situações seguintes, que constituem um obstáculo maior à prática e à realização.
(1) Logo que tenhamos nascido nos infernos, sofremos tão desmedidamente que é praticamente impossível ter qualquer ideia de nos salvarmos. Algumas das nossas atitudes face às situações da vida evocam as esferas infernais: alguns conflitos interiores, mantidos por uma violência incessante e uma agressividade dirigidas contra si mesmo ou contra outros, interditam todo o progresso espiritual. É preciso por isso estar livre deste género de grilhões, ou ter a determinação de se libertar disso.
(2) O apego egoísta e a avareza criam as condições de um mundo onde tudo falta de maneira aguda e permanente - a comida, a água, tudo o que é necessário à vida. Quem é que, torturado por um tal sofrimento, teria tempo disponível e a paz necessárias ao progresso espiritual? Vejamos bem se nós mesmos não estaremos a ser presas de um qualquer sentimento de frustração. Pois é a ausência deste sentimento que constitui a segunda liberdade.
(3) Não sendo um animal, juntamos a terceira liberdade. É verdade que alguns animais fazem prova de certa inteligência, mas geralmente a espécie animal obedece ao instinto, mais que ao pensamento ou à intuição. Para melhor ajudar os outros, alguns grandes seres escolheram reencarnar no mundo dos animais, mas fora este caso específico, será sempre muito difícil a um animal de imaginar como ele poderá tratar dos outros de forma definitiva; é portanto impossível aos animais atingirem a libertação. Por analogia, os seres humanos privados de inteligência e, a fortiori, de sabedoria, terão dificuldade de progredir na via espiritual.
(4) Também não temos liberdade se pensarmos que a violência física e mental é a única forma de responder às diferentes situações da vida. Recordemo-nos sempre que os ensinamentos de Buda condenam absolutamente a violência: ela não pode em nenhum caso desembocar na libertação, porque é impossível que uma acção negativa produza um efeito positivo. Nós devíamos fazer o esforço de olhar para nós sem complacência e ver se não estamos totalmente influenciados por aqueles que preconizam a violência em vez da via espiritual. Será que a violência não me atrai um pouco? Não tirei jamais prazer de fazer sofrer aqueles que me rodeiam? Se sim, posso ter a certeza que a libertação não está ao meu alcance. Tomemos bem consciência daquilo que nos fará libertar o mais rapidamente possível deste género de tendências.
(5) Em certas esferas celestes, temos um corpo não físico mas mental; vivemos, diríamos, numa espécie de estado comatoso que não permite nenhum tipo de aspiração de libertação, seja ela qual for. É o mesmo para os nossos irmãos humanos ditos débeis mentais. A inconsciência dos seres do mundo sem forma, tal como a estreiteza intelectual característica, são obstáculos poderosos ao progresso espiritual.
(6) Pondo em causa a validade da via e duvidando da sabedoria, proibimo-nos o acesso à libertação: eis aqui um outro caso de adversidade maior. Duvidar de si mesmo e das suas capacidades não é obstáculo menor. É essencial ter confiança nos ensinamentos, pois essa certeza é a verdadeira fonte da confiança em si e na sua própria capacidade de despertar.
(7) Dispomos da sétima liberdade logo que, tendo tomado nascimento numa época onde os ensinamentos existam, é possível ter acesso a eles através de mestres autênticos, verdadeiros detentores da tradição.
(8) A oitava liberdade consiste em gozar de todas as suas faculdades. Se eu fosse mudo, por exemplo, ou cego, ser-me-ia particularmente difícil de estudar os textos e de os praticar.
A via espiritual não é nenhum caso fechado àqueles e àquelas a quem falta um ou várias destas liberdades. Que eles saibam entretanto que a encontrarão cheia de obstáculos.
Para qualificar uma existência humana de preciosa, é necessário, para além destas liberdades, reconhecer aí as dez condições favoráveis à prática, das quais as cinco primeiras dizendo respeito ao indivíduo e as cinco últimas ao mundo exterior.
As cinco condições pessoais são as seguintes:
(1) Ter nascido na esfera dos seres humanos.
(2) Ter acesso aos ensinamentos.
(3) Sentir interesse pelos ensinamentos.
(4) Não praticar actos negativos, que têm por efeito a deterioração do elo que se tem
com o mestre e os ensinamentos.
(5) Gozar de todas as faculdades mentais e sensoriais.

As cinco condições relacionadas com o mundo exterior são as seguintes:
(6) Um buda veio a este mundo.
(7) Ele ensinou.
(8) Os seus ensinamentos foram preservados.
(9) Existem um ou vários detentores destes ensinamentos que são capazes de transmiti-los.
(10) Um deles tem a compaixão de nos guiar na via.

Quem reúne estas oito liberdades e estas dez condições goza de um precioso corpo humano, cujo carácter essencial está amplamente ilustrado nas biografias de grandes sábios. Assim, quando o futuro buda Shakyamouni não era mais que o príncipe Siddhartha, ele gozava de tudo o que se podia desejar no que se refere a prazeres, fortuna e poder. O seu pai era um excelente monarca, sempre atento a cuidar do sofrimento dos seus súbditos: ele dava remédios aos doentes, dava de comer a quem tinha fome, uma casa para aqueles que não tinham tecto. E, todavia, apesar da sua bondosa generosidade, o rei não conseguiu pôr um termo definitivo aos diversos sofrimentos do seu povo. Ele agia um pouco como um analgésico, acalmando momentaneamente a dor sem extirpar a causa profunda.
Antes de entrar na vida espiritual, Siddhartha tinha desejado ser rei e príncipe no decorrer de numerosas existências, mas ele não tinha conseguido trazer aos seres mais do que uma ajuda relativa. Tendo desta vez reunido todas as condições necessárias, ele tomou a decisão de descobrir a última panaceia, o verdadeiro sentido do real, que libertaria todos os seres dos seus sofrimentos. Com a idade de trinta anos, então, Siddhartha compreendeu que o poder de ajudar os outros tinha bem mais valor que todas as riquezas do mundo. Renunciando ao trono, ele consagrou o resto da sua vida à procura espiritual, com a única intenção de trazer ajuda a todos os seres de maneira definitiva.
Se a nossa vida tiver estas dezoito qualidades, nós poderemos, também, atingir o despertar. Verifiquemos com regularidade que não está nenhuma qualidade em falta, e, se for caso disso, esforcemo-nos por juntá-las de novo. Se as tivermos todas, apreciemos a nossa situação dando-lhe o justo valor; ela é verdadeiramente inestimável! Porque é demasiadamente raro dispor de todas estas liberdades e ter acesso aos ensinamentos. Isto não é um efeito do acaso, mas antes de ligações positivas e de imensos méritos que acumulámos no passado.
De todas as condições porém, o essencial é manter o elo com o mestre espiritual. Especialmente na prática do yoga do mestre, pois o mestre é por sua vez o vector de transmissão e o ponto de referência absoluto em termos de sabedoria e realização.
No absoluto, ensina Sua Santidade Khyentsé Rinpoché, o mestre espiritual é um com a verdadeira natureza do espírito, a essência dos budas. Mas é graças às profundas instruções do mestre exterior que podemos aceder à realização do mestre interior, o puro despertar da budeidade.
Na expressão «yoga do mestre», «mestre» traduz o sânscrito guru, em tibetano lama, literalmente «supremo», e «yoga», em tibetano naldjor, onde djor significa «apresentar», «reunir», e nal, «estado natural»: o guru yoga é portanto isso que nos inicia no nosso estado natural. Se os diferentes yogas do corpo levam o corpo ao seu bem-estar fundamental, o yoga do mestre tem duas finalidades: inspirar ao discípulo uma compreensão perfeitamente clara da visão dos verdadeiros sábios do passado dando-lhe o poder de realizar, tal como todos os sábios que o precederam, o seu potencial de despertar.
A visualização
Até aqui, nós meditávamos sob o nosso aspecto vulgar, e de ser desperto que se encontrava em cima de nós ou à nossa frente. Porém, agora que estamos purificados pela prática de Vajrasattva, estamos habilitados a visualizar-nos sob o aspecto de um ser de sabedoria.
Para guardar um licor extraordinário, não é preciso um recipiente extraordinário? Nós transformamo-nos portanto em uma das formas femininas de budas, em Vajrayogini, vermelha como o rubi, transparente, luminosa e imaterial. O vajra é o diamante da sabedoria que pode tudo cortar mas que nada o poderá quebrar: assim o conhecimento adamantino corta todos os conceitos. Yogini é o feminino de yogi: é mais correcto representar a sabedoria sob um aspecto feminino. No yoga do mestre, Vajrayogini forma o receptáculo, o aspecto feminino, o receptivo, de outra maneira dito, o conhecimento imediato da vacuidade.
A seguir, visualizamos o nosso mestre principal - sentiremos a sua presença - sob o aspecto de Padmasambhava, o qual incarna toda a compaixão dos seres despertos. A prática tem por objectivo realizar a união da compaixão e da sabedoria que nos são inatas. Desprovida da sabedoria, a compaixão incitar-nos-á talvez a distribuir sem discernimento tudo o que nos for pedido. A inteligência sem amor não é necessariamente boa, e com frequência ela é perigosa. Compaixão e sabedoria são comparáveis às asas de uma ave, sem as quais ela não saberia voar.
Vajrayogini encontra-se de pé sobre um lótus e um sol; ela esboça um passo de dança tomando apoio sobre um cadáver. Não que ela espezinhe um ser especial, é o apego ao eu que ela mantém assim contra o chão: dominando-o, ela liberta-se. Logo que se consiga libertar da crença no eu, não experimentamos a sabedoria da mente? Evoluindo livremente neste estado de perfeita intuição, aprendemos a dançar com a vida, a agir de acordo com a última sabedoria.
A yogini brande na mão direita um punhal de lâmina curva em que uma das extremidades forma um gancho. Com a sua arma extremamente afiada, ela rompe os véus mentais, e o gancho, símbolo da compaixão, permite-lhe repescar os infelizes que estão mergulhados no oceano do samsara.
Na mão esquerda ela tem um recipiente craniano transbordante de ambrósia. Porquê uma taça talhada num crânio humano? Não que a yogini não possa usar outro recipiente, mas este objecto sagrado - trata-se de um crânio, símbolo do fim da crença no eu - faz-lhe falta para nele recolher o néctar da longa vida, a ambrósia da compaixão, o princípio do verdadeiro poder.
Cada detalhe desta visualização tem a sua importância, mas se nos for difícil vê-los, chegará sentirmo-nos como a yogini da sabedoria e não mais como um ser vulgar.
Pura luz, o buda Padmasambhava aparece então. Nós podemos vê-lo tão bem no céu à nossa frente como sobre a nossa cabeça, sentado sobre uma flor de lótus coberto dum sol e duma lua. Da sua mão direita, ele mostra-nos um vajra de cinco pontas, emblema das cinco vias e das cinco sabedorias; sobre a sua mão direita repousa um recipiente contendo o néctar da imortalidade. Na curva interior do seu cotovelo esquerdo, ele guarda um khatvanga, tridente cuja forqueta está encimada por três crânios humanos. As três pontas representam a vitória sobre os três venenos; as três cabeças simbolizam os três corpos, bem como o conhecimento dos três tempos. Cada detalhe das suas vestes e ornamentos de Guru Rinpoché têm um sentido simbólico preciso.
Porquê Padmasambhava, a quem os Tibetanos chamam de Guru Rinpoché, «Precioso Mestre», é o personagem central na prática do yoga do mestre? As linhagens dos nossos mestres têm todas um elo íntimo com este grande sábio, cujo nome significa «Aquele que nasceu do lótus», em tibetano Pema djoungne.
A convite do rei Trisong Detsen, Guru Rinpoché trouxe o Dharma ao Tibete no oitavo século. Entretanto, ele não se limitou a ser para nós um personagem histórico fora do comum. Como o buda Shakyamuni estava prestes a entrar no parinirvana - a paragem definitiva de todo o sofrimento - numa aldeia perto de Koushinagara, na fronteira da Índia e do Nepal actuais, os seus discípulos sentiam um tal desespero que, para lhes dar coragem, ele lhes prometeu voltar sob a aparência de um grande mestre tântrico e de lhes transmitir todos os ensinamentos secretos que ele não havia ainda divulgado.
«Padmasambhava e eu não seremos dois, mas um», profetizou ele.
Para citar o nosso mestre Dilgo Khyentsé Rinpoché:
Meditar no mestre principal percebendo claramente que ele não é outro
senão Padmasambhava, é como uma água muito pura que se despeja num
vaso de ouro: imediatamente ela toma a sua cor. Semelhante meditação
tem a virtude de multiplicar as bênçãos e o poder dos bons votos, pois a
compaixão e as actividades de Guru Rinpoché são especialmente
eficazes nesta era de particular decadência e, por assim dizer, mais
rápidas que as bênçãos de todos os outros budas.

A oração em sete versos e o mantra de Padmasambhava

A recitação da Oração em sete versos e do mantra do Mestre de Diamante forma o cerne do yoga do mestre.
A Oração em sete versos, ou Sete Versos de Diamante, revela profundezas sempre mais subtis e maravilhosas do seu sentido verdadeiro à medida que, recitando-a. avançamos na prática deste yoga.
Aqui está o texto:
Hung. Na fronteira noroeste do país de Uddiyana,
No coração de um lótus cheio de pólen
Vós atingistes a maravilhosa realização suprema.
Venerado sob o nome de Nascido-do-Lótus,
Rodeado por muitas Dakinis.
Possa eu também seguir-vos até ao despertar.
Venha, eu vos suplico, abençoar-me!
Guru Padma Siddhi Hung.


Estes sete versos contêm todos os elementos necessários ao estudo, à prática e à oração. Não somente eles relatam a vida de Guru Rinpoché, como mostram todos os yogas, abordam todos os aspectos da filosofia budista e indicam cada uma das etapas da via.
Na origem, esta oração era uma invocação à qual Padmasambhava respondia aparecendo a noroeste do reino de Uddiyana, o qual designa o actual vale de Swat no Pakistão. Este ser extraordinário brotou do coração de Amitabha, o buda da Infinita Luz, sob o aspecto da sílaba encarnada Hrih que se transformou num rapaz sentado sobre o gineceu dum lótus, bem no meio do lago Dhanakosha. Imediatamente, o rei de Uddiyana, Indrabodhi, recolheu-o pa o adoptar, e a fama do príncipe expandiu-se de imediato por todo o lado na região. Ora, renunciando definitivamente ao reinado, o príncipe Nascido-do-Lótus escolheu praticar todos os ensinamentos espirituais e adquiriu inconcebíveis poderes sobrenaturais.
A oração em sete versos tem numerosos níveis de significados que se reportam aos diferentes níveis de prática. De acordo com a interpretação exterior, o primeiro verso, Na fronteira noroeste do país de Uddiyana, indica o lugar de nascimento de Padmasambhava. O segundo, No coração de um lótus cheio de pólen, recorda o seu nascimento miraculoso (14). Em seguida dirigimo-nos a ele: Vós atingistes a maravilhosa realização suprema. Venerado sob o nome de Nascido-do-Lótus, Rodeado por muitas Dakinis (vossos discípulos). Possa eu também seguir-vos até ao despertar (para trazer imensos benefícios a todos os seres). Vinde, eu vos suplico, abençoar-me! O cerne do mantra de Padmasambhava, Guru Padma Siddhi Hung, conclui estes sete versos.
Esta estância eleva-se espontaneamente no espírito de numerosos mestre em muitas circunstâncias críticas. Padmasambhava foi assim invocado pelos habitantes de um país assolado pela fome; ele manifestou-se aí para pôr fim à calamidade. Uma outra vez, na célebre universidade indiana de Nalanda, esta oração foi revelada em sonhos a eruditos budistas que deviam ter no dia seguinte um debate com filósofos particularmente hábeis em defender teses erradas. Os panditas cantaram-na em coro e Padmasambhava apareceu. Ele dissipou as visões erradas e transmitiu profundos ensinamentos, insuflando assim um impulso considerável ao budismo. Invocado por esta oração, Padmasambhava revelou-se com frequência aos lamas do Tibete no decurso de visões que lhes guiaram na via libertando-os de toda a espécie de obstáculos.
O Pema thangyg, biografia deste grande sábio traduzida em francês sob o título de Le Dict de Padma (tradução de C.G.Toussaint, edições de Deux Océans, Paris, 1994), relata estes feitos e relata as numerosas previsões feitas por Padmasambhava no decorrer dos séculos sétimo e oitavo e que, até hoje, foram sempre provadas correctas. Guru Rinpoche predisse, por exemplo, as doenças específicas de cada século, a emoção perturbadora e os bloqueios subtis que seriam a causa disso, bem como dos remédios apropriados,
Por todas estas razões, Padmasambhava é considerado como o Buda, o Desperto, e o vector principal dos ensinamentos fielmente transmitidos e praticados desde a sua época até aos nossos dias.
O mantra do Mestre de Diamante (Vajra Guru)
Vós vimos, no fim da oração em sete versos, que dizemos Guru Padma Siddhi Hung, a quintessência do mantra de Guru Rinpoché. O mantra completo, que se compõe de doze sílabas, pronuncia-se em sânscrito Om Ah Hung Vajra Guru Padma Siddhi Hung e, em tibetano, Om Ah Hung Benzar Guru Pema Siddhi Hung.
Este mantra é ele também uma porta de acesso aos tão numerosos níveis da prática. Podemos compará-lo a um código que encerra as doze secções do ensinamento e os diferentes graus da profundidade do seu estudo filosófico. Ele contém aliás todas as informações das quais quem medita precisa e que, mesmo lá estando desde sempre, lhe são invisíveis enquanto ele tiver os olhos nas trevas. A prática assídua deste mantra revela toda a ciência que está escondida nas profundezas do nosso espírito.
Om, Ah e Hung representam o corpo, a palavra e o espírito despertos, Vajra Guru o mestre adamantino, Padma significa lótus, símbolo da pureza, Siddhi realizações, e Hung é a sílaba do cerne. O mantra significa resumidamente: «Possamos nós receber a transmissão completa das bênçãos, das realizações e dos poderes do corpo, da palavra e da mente do Mestre de Diamante».
Eis uma primeira abordagem. Encontraremos mais amplas explicações no fim do capítulo seguinte, nos extractos dum cântico que Guru Rinpoché ofereceu a Yeshé Tsogyal.
Recitar ou cantar o mantra de Padmasambhava abre o coração às dificuldades de outrem, tornando-se assim uma fonte de cura tanto para nós mesmos como para os outros. Como ela nos permite invocar os seres despertos, e em particular Guru Rinpoché, cada uma dessas doze sílabas tem o poder de apaziguar doenças e obstáculos. O seu conjunto sagrado previne as perturbações dos elementos (fogo, água, vento, terra e espaço) e gravando-as sobre as rochas pode-se proteger uma região inteira. É por isso que as rochas das alturas tibetanas estão frequentemente ornamentadas com este mantra. Impresso sobre papel ou tecido, desde que ele flutue ao vento, ele tem a virtude de expandir a sua mensagem de paz e as suas bênçãos a todos os seres. Uma vez consagrado, pintado ou escrito, este mantra tem o poder de libertar e de curar aqueles que o vêem; cantado, ele apazigua e liberta aqueles que o ouvem.
Os mestres que, à força de milhões e milhões de recitações, actualizaram o poder deste mantra, podem, soprando sobre a água e por um processo de ordem alquímica, transferir a esta água o poder de curar certas doenças tidas como incuráveis. Os mestres deste mantra têm o poder de suprimir os eventuais efeitos tóxicos da alimentação regenerando-a. Podemos também pôr este mantra em lugares marcados por uma abundância de acontecimentos tristes. O mantra de Guru Rinpoché é notoriamente muito benéfico em famílias afligidas pelo suicídio, pois um tal acontecimento cria uma energia negativa que, se ela não for neutralizada, descarrega-se por vezes sobre um outro membro da família. Sob a forma escrita ou recitada, o mantra em doze sílabas de Padmasambhava dissipa esta energia, assim como todos os obstáculos recorrentes em geral. Ele tem ainda a virtude de prevenir as epidemias e as doenças contagiosas.
Nos nosso dias, os sábios tibetanos que detêm a tradição possuem ainda capacidades pouco vulgares que lhes permitem ajudar os seres num grande número de planos. No domínio medicinal por exemplo, o meu pai, Kangyour Rinpoché, era afamado pelo seu domínio deste mantra. No decurso de certas visões, Guru Rinpoché revelou-lhe exactamente quais as substâncias que deveriam ser usadas para curar tal e tal doença. Este mantra, que age sobre planos muito subtis, dá acesso a coisas espantosas: até recentemente, a sua prática permitiu a certos astrólogos-médicos tibetanos aumentar consideravelmente as suas faculdades.

Praticar o yoga do mestre
A chave do yoga do mestre é o respeito, a confiança e a devoção para com um mestre espiritual autêntico. No seu ensinamento sobre esta prática, Dilgo Khyentsé Rinpoché disse:
Sem esta devoção, um praticante é como um cego. Um cego está
obrigado a entregar-se a quem quer que seja que possa guiá-lo sem
risco de cair num precipício ou de ser levado por um rio no momento
de o atravessar... O mestre dá as instruções essenciais que nos dão
a visão e nos permitem avançar com toda a segurança na via. Mas
existem duas espécies de mestres espirituais; alguns estão qualificados,
outros não. Pôr a sua confiança num falso mestre, ávido e pérfido,
é conduzir-se como um cego que se abandona a um guia incompetente.
O mestre espiritual autêntico indica-nos sem o mais pequeno erro aquilo
que deve ser evitado e o que deve ser procurado.
Para começar a prática do yoga do mestre, podem referir às duas linhas de visualização e às quatro linhas da oração do texto dos Preliminares do Novo Tesouro:

Eu tomo a forma de Vajrayogini e, no céu à minha frente,
Meu mestre principal aparece sob a forma de Padmasambhava.
Encarnação de todos os budas do passado, do presente e do futuro,
Supremo mestre de raiz, eu dirijo a vós a minha oração;
Nesta vida, nas vidas futuras, nos estados do bardo,
que a vossa compaixão nos tome!
Nos três tempos, sem interrupção, distribua continuamente
as vossas bênçãos!

A segunda linha refere-se ao mestre principal, aquele com o qual nos sentimos estreitamente ligados, que tem a capacidade de nos guiar no caminho, e que o vemos aqui sob a forma de Padmasambhava. O mestre é a união de todos os despertos: ele representa os budas do passado, ele é a manifestação dos budas do presente e a fonte dos budas do futuro. Invocamo-lo conjuntamente para nosso bem e para o bem de todos os seres. Com a quinta linha, pedimos-lhe para nos guiar nesta vida, nas vidas futuras, e nos estados intermediários entre uma morte e um renascimento.
A confiança no mestre deverá ser tal como a descreveu Dilgo Khyentsé Rinpoché:
Quaisquer que sejam as circunstâncias difíceis que surjam no nosso
caminho, doença, pobreza, obstáculos, influências negativas ou outras,
não percamos a coragem: não pensemos que, apesar de toda a prática
realizada, a compaixão e as bênçãos do mestre tardam a manifestar-se.
Nós devíamos simplesmente reconhecer que isso é o fruto das nossas
próprias acções negativas que amadurecem assim. Está já aí uma benção
do mestre: poder enfrentar e purificar desde agora o resultado destes
actos negativos.

Quando a doença e outras dificuldades nos batem à porta, desejemos que através do nosso próprio sofrimento terminem os sofrimentos de todos os seres. Tendo formulado um tal voto, misturem indissoluvelmente o sofrimento e a dor na mente de sabedoria do mestre e fiquem lá. A confiança é a melhor maneira de ultrapassar os obstáculos e de estar seguro de não se desviar da via correcta. Guru Rinpoché não disse: «Estou presente à frente de cada pessoa que tiver confiança em mim»?
Uma devoção constante faz com que, em face dum objecto ou duma situação atraente, em vez de se encontrar agrilhoado pelo apego, o coração seja espontaneamente invadido pelo pensamento do mestre. Todas as paixões e desejos vulgares desaparecem. Um dia virá em que, sejam quais forem as nossas actividades, o pensamento do mestre estará continuamente presente no nosso coração.
Experimentando manter uma visualização clara, impregnem-se da presença do mestre cantando a oração em sete versos três, sete ou vinte e uma vezes ou mais. Recitem em seguida o mantra de doze sílabas do Mestre de Diamante tantas vezes quanto possível.
Na etapa seguinte, como indica o texto:
Iniciações e bênçãos de corpo, palavra e mente são perfeitamente obtidas.
As bênçãos do mestre penetram em vós sob a forma de infinitos raios luminosos; brancos para o corpo, vermelhos para a palavra e azuis para o espírito. Estas faíscas luminosas dissolvem-se sucessivamente nos vossos três centros (da testa, da garganta e do coração) e purificam o vosso corpo, a vossa palavra e o espírito. A seguir, eles penetram simultaneamente nos vossos três centros para transmitir as bênçãos, as realizações e os poderes (ou iniciações) do corpo, da palavra e do espírito dos seres despertos.
O mestre funde-se em luz e dissolve-se em mim, inseparável da minha natureza.
Guru Rinpoche dissolve-se agora em luz e funde-se em vós; a sua forma torna-se indissociável da vossa.
Contemplemos o verdadeiro rosto do mestre absoluto: vacuidade-despertar.
Fiquem no estado natural e absoluto do espírito, sem nenhuma separação entre o Buda, o despertar e vós próprios. Eis a realização da verdadeira natureza do mestre: um estado de despertar consciente, perfeitamente livre, que é assim desde os tempos sem começo.
Este estado de despertar absoluto está em cada um de nós, mesmo se alguns tiverem dificuldade de o admitir. Reconhecê-lo, é reconhecer o verdadeiro mestre. O mestre principal é o suporte que contribui para a nossa realização deste estado interior do qual nunca estivemos separados. À semelhança do ouro purificado e do mineral aurífero, um ser desperto e um ser vulgar diferem unicamente pelo facto de um estar purificado, e o outro ainda não. O primeiro não tem mais valor que o segundo; o processo de purificação é o revelador dum potencial que, no absoluto, é idêntico. O mestre exterior e a via permitem assim realizar a verdadeira sabedoria interior.
Ao sair da meditação, concluam a sessão dedicando os méritos ao despertar de todos os seres. Podem dizer por exemplo a curta estrofe da dedicatória dos Preliminares do Novo Tesouro:
Meu corpo, meus bens, meus méritos e a sua própria raiz,
Eu ofereço-os agora sem pena a todos os seres, meus pais:
Que o bem dos seres, através de grandes vagas de bênçãos,
Se realize sem obstáculo.
Digo Khyentsé Rinpoché dá algumas indicações precisas sobre a maneira de dedicar os méritos da prática:
Selem a prática pondo-lhe o selo das orações de dedicatória. Como todas as
outras práticas, o yoga do mestre deve inscrever-se na moldura dos «três métodos supremos».
A preparação da prática fundamenta-se sobre a perspectiva muito vasta do espírito
de despertar, que reforça a prática e a impregna dos meios hábeis. «Meios hábeis»
significa que nós praticamos não somente com vista ao nosso bem estar pessoal,
mas também do de todos os seres sem excepção.
No decurso da prática propriamente dita, fiquem atentos mas livres de toda
a concepção: corpo, palavra e espírito associar-se-ão de maneira harmoniosa
numa concentração perfeita. Não serve de nada murmurar mantras e orações
enquanto o espírito voa, seguindo outros pensamentos, outros assuntos.
Coloquem o vosso corpo numa postura equilibrada, recitem os mantras
e as orações de maneira clara e distinta, e deixem o vosso coração encher-se
de devoção e de compaixão. Concentrem-se sobre todos os aspectos e detalhes
da prática. Ela tornar-se-á assim invulnerável aos obstáculos, às condições
adversas e aos desvios.
Para concluir, selem a prática com a dedicatória. O melhor meio de assegurar
que os méritos não se esgotam jamais, e que ao contrário eles aumentem sem
cessar, é de seguir o exemplo dos budas do passado. Dediquem ao despertar de
todos o mérito resultante da vossa prática espiritual, desejando que eles atinjam
a perfeição do mestre.
Associar estes três métodos junta num só ponto todos os aspectos cruciais do mahayana.

3.6 - AS VIRTUDES DO MANTRA DO MESTRE DE DIAMANTE
É interessante conhecer o poder do mantra que está no coração do yoga do mestre. O diálogo que se segue é uma tradução livre de certas passagens de um texto escrito no século oitavo e referem a uma conversa entre Padmasambhava e a dakini Yeshe Tsogyal, a sua principal discípula tibetana.
Depois de ter apresentado ao Guru Rinpoché as oferendas exteriores, interiores e secretas, Yeshe Tsogyal fez-lhe a seguinte pergunta;
«Mestre Venerado, para o meu bem e para o bem de todos os seres que hão-de vir, queira tomar o meu pedido em consideração. O facto de vos ter encontrado é para mim e para aqueles do meu tempo uma virtude inestimável. No tempo que há-de vir, será extremamente difícil de se encontrar em presença de um ser tal como vós.
«Pessoalmente, recebi ensinamentos, conselhos e práticas imensas, e não me sobra a mais pequena dúvida. Em contrapartida, vós havíeis previsto consideráveis dificuldades para os homens e as mulheres dos tempos futuros: o seu espírito será turbulento, eles terão dificuldade de encontrar e de compreender os ensinamentos autênticos. A abundância de visões deturpadas e de ensinamentos falaciosos porão o seu espírito nas trevas, e ser-lhes-á difícil discernir o verdadeiro do falso. Aliás, eles recuarão perante os ensinamentos verdadeiros. Quando chegarem as épocas de desastres, de guerras, de fomes e de doenças, os seres serão varridos de um para o outro continente, sempre em fuga, como as formigas escorraçadas do seu formigueiro.
«Vós haveis dado numerosas indicações sobre a maneira de afastar as calamidades e as épocas difíceis; entretanto, quando estes tempos forem chegados, muitos desejarão voltar-se para o dharma mas não terão tempo disponível. Quanto àqueles que experimentarem um interesse real pela prática, eles terão dificuldades em aprofundá-la.
«A discórdia reinará entre os seres; a sua alimentação e os seus objectos habituais não terão mais nada de natural e serão contaminados. Para travar estas condições nefastas, vós havíeis já evocado o poder dos mantras, e em particular o do Mestre de Diamante. Tenha a bondade de nos explicar este mantra e a maneira de o utilizar.»
O grande sábio respondeu:
«É verdade, nesses tempos abater-se-ão desastres e calamidades. Com a intenção nos seres que nessa altura viverão, escondi tesouros em diferentes pontos do planeta - dentro de rochas, nas montanhas, nos rios, e também no coração dos seres predestinados. Estes tesouros serão extremamente benéficos.
«Quando ao mantra do Mestre de Diamante, ele é aquele de todos os seres despertos também. Nos tempos difíceis poderemos cantá-lo em lugares sagrados ou solitários, no cimo das montanhas, ao pé dos rios ou dos oceanos, ou ainda em lugares onde ocorreram catástrofes.
«Que um grande praticante, um monge autêntico ou qualquer um com uma imensa compaixão então recitar esse mantra cem vezes, mil vezes, dez mil vezes ou mais, e o resultado será inconcebível. O som do mantra poderá parar ou afastar toda a espécie de calamidades tais como doenças, fomes ou guerras, bem como as consequências dos desequilíbrios da natureza: más colheitas, chuvas demasiado abundantes, inundações ou secas. Este mantra contém imensos poderes que permitem equilibrar os diferentes elementos nos planos exterior, interior e secreto.
«Toda aquele que praticar este mantra reencontrará o perfeitamente desperto, o Buda, nesta vida, nas vidas futuras ou no estado intermediário, em sonho ou na realidade.
«Aquele ou aquela que, com uma compaixão autêntica, recitar este mantra regularmente, pelo menos cem vezes por dia, não conhecerá nenhuma dificuldade material, e verá os seus desejos concretizados graças ao poder desta recitação.
«Aquele ou aquela que o recitar mil vezes por dia receberá bênçãos inconcebíveis e a capacidade de socorrer os outros de forma inimaginável.
«O praticante que o recitar cem mil vezes ou dez vezes cem mil de maneira contínua, quer dizer todos os dias e sem interrupção, poderá pacificar tudo o que é negativo, e adquirirá para si e para outrem o poder de aumentar vida e sabedoria. Ele poderá dominar os fenómenos e subjugar as forças negativas. O seu poder de ajudar os outros aumentará imensamente.
«Toda a pessoa que fizer trinta ou setenta vezes cem mil recitações de forma contínua tornar-se-á inseparável dos budas do passado, do presente e do futuro e receberá conselhos e indicações directamente dos seres despertos. Todos os seus desejos realizar-se-ão. No máximo, ela obterá, no espaço de uma só vida o corpo de arco-íris. A um nível médio, ela atingirá a liberdade última no momento da morte. No mínimo, durante o bardo, eu, Padmasambhava, virei em pessoa para a guiar na via do despertar total.»
De seguida, Yeshe Tsogyal disse:
«Mestre, esta é uma prática verdadeiramente extraordinária! Tenha a bondade de nos explicar o sentido deste mantra, de tal forma que os seres humanos que hão-de vir possam melhor compreendê-lo.»
Padmasambhava deu-lhe então uma resposta extremamente detalhada, da qual aqui estão alguns extractos:
«Este mantra é a essência de todos os mantras. Através dele, podemos explicar todas as ciências e todos os ensinamentos que existem. Escuta bem, toma nota por escrito daquilo que eu vou dizer e explica a seguir àqueles que terão necessidade:
«Om corresponde à natureza do corpo, Ah à natureza da palavra, Hung à natureza do espírito de todos os budas. As cinco palavras Vajra guru Padma Siddhi Hung referem-se aos cinco aspectos ou «famílias» de budas: a família do Diamante (Vajra), da Jóia (Ratna), do Lótus (Padma), do Duplo-vajra (Karma) e da Roda (Buda). Eles representam as cinco sabedorias: a sabedoria parecida-ao-espelho, a sabedoria da equanimidade, a sabedoria de discernir, a sabedoria que tudo realiza e a sabedoria do espaço absoluto.
« No que se refere aos efeitos deste mantra:
«As três sílabas Om Ah Hung têm o poder de purificar os seres dos três principais venenos que são a aversão, o apego e a ignorância. As sílabas Vajra Guru Padma Siddhi Hung agem sobre as emoções de maneira mais específica; Vajra pacifica a emoção grosseira da aversão e os obscurecimentos que ela provoca; Guru dissipa os véus grosseiros e subtis do orgulho; Padma apaga os véus e as emoções provenientes do apego; Siddhi aplica-se à inveja e ao desejo; Hung purifica a ignorância e os véus subtis que ela traz consigo.
«Este mantra não trata somente as desordens emocionais devidas aos cinco venenos, mas trata também os seus efeitos sobre o corpo físico: os desequilíbrios que perturbam os órgãos maiores.
«Podemos igualmente dar uma tradução literal deste mantra:
Om Ah Hung: o corpo, a palavra e o espírito
Vajra: o diamante indestrutível
Guru: supremo, o mestre
Padma: o lótus
Siddhi: as realizações
Hung: receber, juntar, perfazer.
«Ele possui um grande poder de protecção contra as forças exteriores susceptíveis de perturbar o espírito e os órgãos vitais. Ele pode fazer recuar e suprimir toda a forma de violência se alguém de uma imensa compaixão o praticar com assiduidade, ou se numerosas pessoas o recitarem em uníssono: Om Ah Hung afasta os conflitos armados devidos aos três venenos de maneira geral. De maneira mais específica e em relação aos cinco venenos, Vajra afasta as guerras que causam a cólera; Guru aquelas nascidas do orgulho; Padma aquelas devidas ao apego egoísta; Siddhi aquelas que inspiram inveja e desejo; e Hung aquelas provocadas por uma influência exterior súbita, fonte de desequilíbrios (por exemplo, a influência que leva os dirigentes das nações a agir de maneira irresponsável).»
De acordo com Padmasambhava, cantar nem que seja só uma vez o mantra tem um efeito subtil de tal forma vasto que, se este último tivesse uma forma, o universo inteiro não seria capaz de o conter. Escrevê-lo de maneira a que seja visto e recitá-lo de forma que os seres o oiçam ou dele se lembrem são fontes de virtudes imensas. Cantá-lo nos locais dum acidente, dum desastre natural ou de qualquer tipo de dificuldades, previne que isso se repita. Queremos ajudar uma pessoa ou um animal no momento da morte? Podemos pôr sobre o corpo do moribundo o mantra escrito em tinta dourada sobre papel azul e consagrado. A sua influência benéfica exercer-se-á no estado intermédio e conduzirá este ser para uma existência melhor. Cantar este mantra num carro ou em qualquer outro tipo de transporte é uma protecção eficaz contra os acidentes.
Podemos igualmente servir dele para revitalizar o alimento; no momento do pequeno-almoço por exemplo, recitamo-lo várias vezes, e depois sopramos sobre os alimentos. Ou então, recitando, concentramo-nos para juntar mentalmente a essência dos elementos que dissolvemos a seguir no alimento. Quem assim fizer verá a sua energia regenerada, reequilibrada e transformada.
Este mesmo método poder servir para abençoar os medicamentos que tomamos ou que damos, a fim de aumentar os efeitos terapêuticos. De acordo com a medicina tibetana, é possível restabelecer o equilíbrio dos agregados do corpo físico utilizando os princípios activos de plantas e minerais específicos. Mas para reequilibrar o plano de energia muito subtil que circula no nosso corpo, e em particular o plano mental, isto não chega; é necessário recorrer à concentração e à recitação de certos mantras. É por isso que a medicina tibetana não se contenta em preparar os medicamentos de forma mecânica. O preparador concentra-se com muito amor e compaixão, e serve-se de mantras para consagrar os medicamentos enquanto os fabrica; o médico faz o mesmo antes de os administrar. Efeitos subtis conjugam-se então aos efeitos químicos, equilibrando as energias subtis e contribuindo para o sucesso do tratamento. Também vocês podem consagrar com este mantra os medicamentos que tomam.
Em resumo, o objectivo da prática deste mantra não é unicamente fazer obter àquele que o recita bênçãos e poderes, mas de lhe permitir ajudar-se e a ajudar os outros de maneiras diversas. Na vida quotidiana, criem o hábito de cantar o mantra ao acordar e ao adormecer, e antes de começarem um projecto, um trabalho ou uma viagem. Felizes, cantem-no para partilhar a vossa felicidade; tristes, cantem-no para apaziguar o sofrimento do universo. As virtudes assim engendradas derramar-se-ão sobre vós e sobre todos os seres, como um rio sem fim.

3.7 - A TRANSFERÊNCIA DA CONSCIÊNCIA
Existe um ensinamento sobre a forma de se ajudar a si mesmo e de assistir a outrem no momento da morte; a prática da transferência da consciência (consciência, princípio consciente e continuum de consciência são, neste contexto, sinónimos - ver nota 8), ou powa, largamente difundido na Índia antiga, e até aos nossos dias no Tibete.
Viver o mais possível para praticar e progredir na via espiritual é precioso. Entretanto, a meditação sobre a impermanência de todas as coisas nos fazem realizar até que ponto é imprevisível o momento da partida. Para essa viagem difícil, é melhor dispor de uma técnica eficaz: a transferência da consciência. Este método pode ser aplicado em muitos casos.
O caso muito pouco utilizado do «powa trong djouk»
Nós vimos que a existência de um indivíduo está em estreita relação com a duração da sua vida, da sua energia vital e do seu princípio vital. Antigamente, acontecida que certos yogis, cuja duração da vida não se esgotava mas cujo corpo estava gasto, transferiam a sua consciência para um corpo jovem de alguém abatido por uma morte prematura. Para vos dar alguns exemplos, na época em que Guru Rinpoché chegou ao Tibet, a Índia contava numerosos sábios e panditas, entre os quais um professor de filosofia, muito belo e duma grande erudição, chamado Kamalashila. Kamalashila treinava-se na prática do powa transferindo a sua consciência para o corpo de um pombo: ele atirava-se assim no espaço, abandonando o seu corpo humano na margem de um rio. Um dia, um outro adepto, que era velho, disforme e pouco instruído, para aproveitar-se da fama de Kamalashila, tomou conta do corpo inanimado deste deixando no seu lugar o seu próprio invólucro pouco reluzente. O brilhante erudito tendo obtido a realização da vida imortal, por isso, é sob esta forma de um velho de rosto moreno que ele se manifesta por sua vez, sob o nome de Padampa Sangye no Tibete e de Bodhidharma na China.
Esta técnica ainda se praticava no tempo de Milarepa. O filho de Marpa perdeu a vida num acidente equestre. Não encontrando um corpo humano disponível, ele transferiu-se para o corpo dum pombo e voou em direcção ao sul. Chegado à Índia, ele pôde finalmente integrar o corpo de um bebé que acabava de morrer. Qual não foi a estupefacção dos pais de ver o seu filho voltar à vida falando uma língua que lhes era desconhecida!
Por cause deste género de incidentes, a técnica só foi pouco utilizada e de seguida interdita, mas a linhagem existe ainda nos nossos dias; meu pai, Kangyour Rinpoché, dela era detentor. Aliás, ele serviu-se dela um dia para ajudar os nómadas em aflição a levar para o campo o cadáver de um enorme iaque que tinha morrido numa pradaria longínqua.
Meu pai era um mestre de yoga de grande renome. Ele me dizia que para provar o seu grau de mestria, o praticante do powa devida poder transferir a consciência dum corvo e, uma vez que a ave tombasse morta, trazê-la à vida. Só quando ele conseguisse esse feito é que era julgado capaz de realizar a transferência para qualquer um outro.
Segundo caso: o powa por si
Num dos casos em que o powa é mais frequentemente utilizado, é quando o próprio está perto da morte. Transfere-se nesse instante a sua própria consciência numa terra pura (13), evitando assim o bardo para encontrar uma paz e um bem-estar propícios à realização das diferentes etapas da via.
Esta aplicação do powa apoia-se sobre quatro pontos principais:
(1) O destino do princípio consciente: aqui o termo da viagem é um estado de despertar e não de confusão. Trata-se de fundir o seu espírito no espírito dos seres totalmente despertos.
(2) A via de passagem: o caminho que leva a este destino encontra-se no corpo, é o canal subtil mediano.
(3) O ponto de partida do princípio consciente: o centro do corpo, o chakra do coração.
(4) A maneira de viajar: logo que viajamos, tomamos diversos meios de transporte (comboio, carro, avião...). Para a transferência do princípio consciente, servimo-nos aqui da sílaba-semente A.

Visualizamos então o princípio consciente sob a forma desta sílaba no centro do coração e, pronunciando o som P’et, ejectamo-lo através do canal central. O princípio consciente funde-se agora no espírito dos budas dos três tempos e aí permanece. Para praticar o powa, é indispensável ter uma motivação correcta; o melhor suporte de esta técnica é a compaixão, uma imensa compaixão impregnada de uma generosidade que se propaga pelo pensamento e se exprime fisicamente.
Quanto ao destino, o praticante visualiza sobre a sua cabeça Eupamé, o buda da Infinita Luz (Amitâbha em sânscrito), de cor vermelha e emitindo raios de luz. Se queremos fazer esta prática com uma grande precisão, podemos visualizar o buda Eupamé muito claramente e em detalhe. Se preferirmos uma maneira mais simples, visualizamos, sempre em cima da cabeça, a natureza de todos os seres despertos sob a forma de uma simples esfera de luz.
A via de passagem, o canal central, começa na abertura craniana e desce até ao centro secreto; ele é muito direito. Nesta prática, limitamos a visualização à secção que vai do crânio ao chakra do coração, onde o canal está bloqueado por um disco de luz sobre o qual se encontra a sílaba A. Esta sílaba representa a natureza intangível do princípio consciente. Visualizamos A e, pronunciando a sílaba P’et, consideramos que a sílaba A atravessa, tal como uma estrela .....150, o canal central e a abertura craniana para se unir ao coração do buda Eupamé. Enquanto se trata de um treino, o praticante deixa repousar alguns instantes a sílaba, depois fá-la voltar a descer até ao seu coração. De novo, ele ejecta a sílaba A no coração do buda Eupamé pronunciando P’et, depois ela a faz descer novamente.
Este exercício pode ser repetido muitas vezes. Ele comporta todavia um risco: ele pode ser perigoso para o equilíbrio dos elementos do corpo. Aquele ou aquela que se treinar no powa não deve sobretudo ejectar a sílaba A e ficar lá. Isto poderia alterar a duração da sua vida. Até que se esteja seguro de que a sua vida chegou ao seu termo. É essencial paliar este inconveniente da seguinte maneira: no fim de cada sessão de treino, visualizamos que o buda Eupamé sobre nós de transforma em buda Tsépamé, o buda da Infinita Vida (Amitayus em sânscrito), receptáculo da essência de todos os elementos. Esta essência luminosa desde através da abertura craniana sob a forma de um néctar que enche sucessivamente os chakras do corpo, da palavra e do espírito. Visualizamos a seguir no chakra do coração uma bola de luz, um pouco como uma casca de ovo, formada por dois hemisférios em posição horizontal, um representando a lua, o outro o sol. A bola está inicialmente ligeiramente entreaberta; o néctar carregado de bênçãos é aí vertido e enche-la. Os dois hemisférios fecham-se agora hermeticamente, preservando a energia vital que mais nada, nem forças negativas nem acidentes, podem afectar.
Uma vez a bola fechada, podemos ainda reforçar a prática recitando o mantra do buda da Infinita Vida: Om Amarani Jivantayé Svâhâ. Existem numerosos mantras de longa vida; este é uma forma condensada. Podemos também recitar o mantra do buda da Infinita Luz: Om Amidéva Hrîh.
Na eventualidade de dizer P’et e o mantra de longa vida parecer muito longo, é ainda possível pronunciar simplesmente a sílaba A para transferir a consciência, e de dizer Hrîh em lugar do mantra da longa vida.
Para terminar este exercício, visualizamos que selamos a abertura craniana com dois vajras cruzados, símbolo da indestructibilidade. Esta prática torna firme a energia vital e prolonga a duração da vida.
Concluímos a sessão dedicando, como sempre, os méritos da prática à felicidade relativa e última de todos os seres.
Se desejarmos poder servir do powa no momento da morte, a fim de ajudar-se a si mesmo ou para assistir a outrem, é necessário fazê-lo de forma intensiva durante um certo tempo.
É preciso sempre estar atento a um ponto essencial. Antes de efectuar a transferência definitiva, é indispensável estar absolutamente seguro que este é realmente o momento oportuno, pois encurtar uma vida, mesmo aquela que nos pertence a nós, é um acto pesado de consequências negativas. Enquanto estivermos vivos, devemos tudo fazer para evoluir e para ajudar a outrem. Não aplicaremos portanto o powa ‘’definitivo’’
senão quando tivermos a certeza absoluta de que os elementos e os agregados do corpo não podem mais permanecer em coesão. Somente então será correcto ejectar sem retorno o princípio consciente para fundi-lo definitivamente no coração do buda Eupamé.
Neste caso, alguns dirão, para que serve conhecer este método desde agora? Esta técnica exige que se prepare seriamente para ser capaz de o aplicar no momento pretendido. É só com a condição de ter assimilado perfeitamente os detalhes da transferência que podemos, no momento crítico, manter o espírito livre de toda a confusão.
O powa por outrem
A prática do powa encontra uma terceira aplicação no caso em que desejamos ajudar um ser que acaba de morrer. A faculdade de prestar este serviço aos outros exige de se ser treinado previamente sob o controle directo de um mestre qualificado e de ter obtido os sinais de realização.
No momento em que cessa a respiração externa, o coração para de bater; todavia, o calor e a respiração internas subsistem ainda durante alguns instantes, e mesmo algumas horas. Este é o momento crucial para assistir o ser que acaba de morrer. Visualizamos o seu canal central (entre o coração e a abertura craniana) com, ao nível do coração, o seu princípio consciente sob a forma da sílaba A e, sobre o crânio, o buda da Infinita Luz. Pronunciando P’et, transfere-se o seu princípio consciente no espírito de compaixão e despertar infinitos do buda, onde ele encontra paz e liberdade.
Enquanto que no Oriente esta prática é respeitada, no Ocidente pode parecer mal pronunciar a sílaba P’et em voz alta. Neste caso, dizemo-la mentalmente. Com a intenção de libertar de todo o sofrimento a consciência da pessoa defunta, transferimos a sílaba A para o buda Eupamé, que representa a essência dos seres despertos. Ficamos a seguir no estado natural do espírito, livre de toda a conceptualização. Dedicamos os méritos da prática ao despertar de todos os seres e durante quarenta e nove dias que se seguem ao falecimento rezamos tanto quanto possível pelo defunto.
Se ainda não adquirimos a capacidade de transferir o princípio consciente desta maneira, podemos ao menos ajudar os mortos recitando os diferentes mantras referidos neste livro e as orações específicas ligadas ao powa e ao bardo. Desejaremos que todos os seres desenvolvam a faculdade de se transferir segundo a via profunda, que todos os nossos amigos e os membros da nossa família encontrem a paz no instante de morrer, sem ter que atravessar a experiência difícil durante o processo da morte e os períodos que se seguem. Antes de rezar, consagramos alguns instantes a engendrar uma intenção positiva. A seguir, recitamos as orações e praticamos a troca. Para concluir, oferecemos os resultados da prática àquele ou àquela que estamos a assistir, depois a todos os seres sem excepção.
Durante quarenta e nove dias tentamos prosseguir esta prática. De facto, após a morte, um ser guarda geralmente a memória do seu corpo e do seu meio habitual durante sete semanas. A força do hábito incita a recusar seu novo estado e a perda do seu corpo, mesmo totalmente gasto. É por isso que é importante assistir durante todo este período uma pessoa que acaba de morrer.
Aliás. Podemos experimentar ajudar assim todos os seres, sejam eles humanos ou não. A forma que eles adoptam não é mais do que um invólucro; mesmo que eles sejam consideravelmente diferentes de nos pela aparência, isso não quer dizer que a sua consciência seja diferente da nossa. Vemos a ilustração desta verdade à nossa volta. Certos homens acumularam uma tal energia kármica positiva que eles herdam uma vida esplêndida, onde eles podem deixar correr os dias na ociosidade. Outros, pelo contrário, vivem apinhados em casebres e, apesar de trabalharem arduamente, têm muita dificuldade de sobrevivência. Podemos afirmar, à simples vista do seu ambiente exterior, que estas pessoas, portanto todos os seres humanos, são fundamentalmente diferentes? Aquele que reside num palácio não é por isso um homem superior; aquele que vive numa cabana não é por isso um homem inferior. Ao fim de vidas sucessivas de um ser, as condições exteriores variam, mas o princípio consciente, esse viajante, continua. A consciência que acumulou uma energia kármica predominantemente negativa pode ser empurrado para revestir a forma de uma serpente, dum insecto... Isto não significa que a seguir, sob a influência do seu crédito de energia positiva, ela não possa voltar a tomar nascimento num mundo de existência mais feliz.
A utilidade da prática e da oração não pára ao fim dos quarenta e nove dias, mesmo se o princípio consciente do defunto talvez tenha tomado uma nova forma de existência. A intenção benfazeja e a energia da oração continuarão a ser-lhe muito benéficas e ajuda-lo-ão a encontrar uma vida feliz. Se ele já obteve um renascimento favorável, elas evitarão que ele aí encontre obstáculos. Continuar durante muito tempo a rezar por aqueles que já morreram não pode senão fazer-lhes bem; é também uma ajuda eficaz para os seus próximos.

A assistência aos doentes

Muito embora esta técnica seja principalmente empregue para ajudar os moribundos e os mortos, ela pode contribuir para o restabelecimento de uma pessoa que sofre. Neste caso, em vez de Eupamé, o buda da Infinita Luz, visualizamos Tsepamé, o buda da Infinita Vida, sobre a cabeça do doente. Associamos a esta visualização a recitação de mantras, tal como Om Amarani Jivantayé Svâhâ que é o mantra que melhor se adapta a este género de circunstâncias.
No decurso desta recitação , consideramos que o buda Tsepamé emite em todas as direcções do espaço raios de sabedoria, as bênçãos dos seres despertos e a essência dos cinco elementos. Transformados em néctar, eles propagam-se pelo corpo do doente, penetrando e enchendo cada um dos seus centros a fim de regenerar a sua energia vital.
Visualizamos ao nível do seu coração uma esfera entreaberta formada de dois hemisférios luminosos, o sol e a lua. O néctar derrama-se e, quando a bola estiver perfeitamente cheia, ela fecha-se. Esta prática contribui para aumentar a energia vital. Recitamos igualmente as orações para prolongar a duração da vida do doente e a proteger.
Noutros casos, o doente queixa-se de uma sensação de fadiga crónica apesar de um bom equilíbrio fisiológico. Esta impressão, apesar de frequentes tratamentos não resultarem, provem de uma fuga de energia. A meditação sobre o buda Tsépamé revela-se então ser muito útil.


CONCLUSÃO
Podemos perguntar se houve um começo do ciclo ilusório de existências, e, em caso afirmativo, como seria ele produzido, porque alguns cometeram actos negativos, etc. As respostas variam consoante as teorias, Os ensinamentos budistas explicam que a consciência fundamental se reveste de múltiplos aspectos, dos quais a ignorância co-emergente e a sabedoria co-emergente. A ignorância co-emergente está na origem de todos os erros dos seres sobre a natureza e a realidade das coisas. É ela que, no exemplo clássico, faz tomar uma ponta de uma corda por uma serpente, inspirando um medo que dura tanto quanto a ignorância. A sabedoria co-emergente, que permite reconhecer que aí não há mais do que uma ponta duma corda, abole naturalmente o medo da serpente. Graças à prática, a sabedoria co-emergente toma o lugar da ignorância co-emergente, até a dissipar completamente: atinge-se o despertar total, de onde não se volta a cair mais no ciclo da ilusão. É como com certas doenças, não podemos voltar a ter uma recaída uma vez que elas tenham sido correctamente tratadas.
A meditação é uma via que permite o despertar da sabedoria co-emergente. Quando meditamos, conseguimos ficar durante um breve instante no estado de simplicidade natural do espírito, sem mudança, sem alteração e sem fabricação mental. Depois, diferentes influências intervêm. Elas variam consoante a situação. A saúde, o estado de fadiga ou de fome... Apercebemo-nos que em certos momentos o espírito pode desencadear-se como uma tempestade, com pensamentos desenfreados que emergem e partem em todos os sentidos. Noutros momentos, estamos mergulhados num estado de torpor e de inconsciência: ele está obscurecido e não deixa filtrar nenhuma claridade, como um céu coberto. Para alguns, este estado é agradável, outros acham mais refrescante os pensamentos efervescentes,
Pouco importa, o essencial é estar consciente daquilo que se passa dentro do espírito e de experimentar ficar no «aqui e agora», sem pensamentos relacionados com o passado ou ....158..... o futuro. Ficar no estado é excelente para a saúde física e mental. Tomar consciência daquilo que se passa no espírito leva-o ao estado de tranquilidade. Durante alguns instantes sentimos um estado de claridade. Não se trata da claridade exterior. É um sol interior que invade o espírito durante uma fracção de segundo, um estado de certeza, expressão da natureza fundamental do despertar que cada um possui. Treinando ficar neste estado, apagamos progressivamente os véus mentais que escondem esta natureza.
A tradição da Grande Perfeição (14) fala da base, da via e do fruto: a natureaza fundamental do despertar é a base; o treino que permite reconhecer este despertar é a via; o fruto é a tomada de consciência da luz interior, Na realidade, o fruto é inseparável da base, a natureza fundamental. Reconhecê-lo, nem que seja por alguns instantes, é um sinal de que o despertar está ao alcance da mão.
Mesmo se não pudermos obter o pleno despertar desde o presente, esta experiência será preciosa no momento da morte. O corpo tomou forma graças à união da essência do pai e da mãe e ao suporte dos cinco elementos. No momento da morte, estes elementos reabsorvem-se uns dentro dos outros. Logo que a consciência se dissolve finalmente no espaço, cada ser ..... a experiência da clara luz, natureza intrínseca do espírito. Não a reconhecemos nesta vida porque não nos damos a oportunidade de fazer essa experiência. Entretanto esta luz está lá sempre. No momento da morte, todos os seres sem excepção fazem experiência disso. Infelizmente, se eles não a conheceram durante o decurso da sua vida, eles terão medo, medo daquilo que na realidade é a sua própria luz. É por isso que, a fim de evitar este medo que impede de atingir o despertar no momento da morte, é desde agora muito útil de praticar a tomar consciência da luz interior.
Logo que morremos, guardamos um corpo mental parecido àquele que temos em sonhos. No estado onírico, passeamo-nos por todo o lado, dedicando-nos a múltiplas actividades. No estado intermediário, apesar de termos abandonado o corpo físico, guardamos a memória e é por isso que nos apercebemos dentro de um corpo mental. Atravessamos assim diferentes experiências de estados alucinatórios que podem ser muito aflitivos. Na realidade, estamos apenas apanhados pela .... dos seus próprios pensamentos por não termos reconhecido a luz intrínseca.
Um treinamento regular é necessário no decorrer da vida presente para chegar a reconhecer a clara luz no momento da morte. É para este fim que tende a meditação. Quando nos sentamos por alguns instantes e quando nos esforçamos de estar aqui e agora, sem pensamentos relacionados com o passado ou o futuro, constatamos quase de imediato que as cadeias de pensamentos começam a desfilar. Para acabar, o corpo está aqui e o espírito algures. Vendo bem, reconhecemos pensamentos positivos ou negativos, e outros que não são nem bons nem maus. Alguns ensinamentos recomendam parar os pensamentos negativos. Isto é seguramente útil. Mas o que é capital, é dar-se conta que estamos em vias de deixar ir pela aparição gradual dos pensamentos.
Observemos agora aquele que observa. Quem é este observador? Na realidade, ele não existe nem observador nem observado. Se, de súbito, desviarmos a atenção sobre quem é o observador, atingimos um estado de claridade próximo da sabedoria intrínseca. Ficamos alguns instantes no estado de tranquilidade; de novo, um movimento se creia e os pensamentos manifestam-se,
Meditar desta maneira revela três aspectos do espírito: uma tranquilidade vazia de pensamentos, um movimento de pensamentos e um estado fugaz de claridade interior revelado pela procura do observador, Na realidade, estes três aspectos não estão separados, eles fazem parte do mesmo fluxo.
Pensam talvez: «Para que serve ficar sentado assim, não é perda de tempo?» Creio que não. Na via, acontece que as nossas emoções nos levam ao ponto perder todo o controle de nós mesmos. Nós perdemos a cabeça, e isso pode conduzir-nos ao hospital psiquiátrico. Em contrapartida, se adquirirmos o hábito de observar o estado do nosso espírito, aquilo que aí se manifesta e como nos deixamos distrair, os pensamentos emergem cada vez mais raramente; do coração do estado da consciência desperta, atingimos a sabedoria.
Tudo isto demora o seu tempo. Para se libertar dos hábitos de percepção que nos reduzem à escravatura, cada um poderá adoptar, entre todas as práticas propostas, os exercícios que convêm à sua situação (recitação de mantras, visualização de luzes, de cores...). Veremos a utilidade disso nesta vida, no momento em que deveremos deixar esta vida e na seguinte,
De facto, no momento da morte e no estado intermediário, atravessamos diversas experiências. As luzes, os sons e as manifestações que nos apercebemos serão então susceptíveis de fazer perder o controle de si mesmo. Se temos o hábito desde agora na experiência da realidade intrínseca vivida em meditação o espaço de um brilho, no bardo ultrapassará este pânico e reconheceremos a consciência desperta do espírito.
É desde o presente que é preciso obter a mestria que permite controlar o espírito nos estados que seguem a morte e precedem uma nova existência. A mestria do espírito dá a liberdade de escolher o tipo de vida que desejamos levar.
NOTAS
(1) - O triplo cesto contem os textos relativos às três matérias, ou práticas, de despertar: o vinaya ensina a disciplina; os sutras, o recolhimento meditativo; e o abhidharma, o conhecimento.
(2) «O véu cognitivo designa o fraccionamento do conceito em três polos (sujeito, objecto e acção); o véu emocional designa a avareza e os outros conceitos (assim formados)» Asanga, Anuttara-tantra-shastra (rGyud bla ma).
(3) Kangyour Rinpoché (1895-1975), pai do autor. Um dos maiores yogis e eruditos budistas deste século, encarnação de Namkhai Nyingpo (discípulo próximo de Padmasambhava), descobridor de tesouros espirituais; um dos primeiros instigadores do ensino do budismo tibetano aos Ocidentais, entre os quais teve numerosos discípulos. Seu mestre, Dédroung Rinpoché (que foi também o mestre de Dudjom Rinpoché) era discípulo de Jamyang Khyentsé Wangpo e detentor da sua tradição ecuménica. Como seu mestre, Kangyour Rincpoché foi o chefe espiritual do mosteiro de Riwotché no Tibet, onde diferentes tradições eram praticadas conjuntamente.
Dudjom Rinpoché (1904-1987), encarnação de Padmasambhava, descobridor de tesouros, chefe supremo da escola Nyingma di budismo tibetano, grande erudito e escritor. Entre as suas obras mais importante figura a História da tradição antiga. Um dos primeiros grandes mestres tibetanos a propagar os ensinamentos no Ocidente.
Dilgo Khyentsé Rinpoché (1910-1991), encarnação de Jamyang Khyentsé Wangpo, era um dos maiores mestres e eruditos deste século; descobridor de tesouros espirituais e detentor de todas as linhagens do budismo tibetano. Depois de ter passado mais de vinte anos da sua vida em retiro solitário, ............incansavelmente através do mundo inteiro uma enorme actividade de preservação e de transmissão de ensinamentos. Sua Santidade o XIV Dalai Lama considera-lo como um dos seus mestres principais.
(4) Os cinco venenos: a ignorância, o apego egoísta, a aversão, a inveja e o orgulho envenenam toda a acção cometida sob a sua influência. A expressão «emoções perturbadoras» é sinónima; é a tradução do termo tibetano nyon mongs, em sânscrito klesha, assim definido no grande dicionário Tsig mdzod chen mo: «Fenómeno mental que, provocando dificuldades afligem o corpo e o espírito, bem como actos nocivos, torna a corrente mental extremamente tormentosa». Apesar do usao da palavra «emoção» seja passível de crítica, porque aqui ele não corresponde sempre perfeitamente àquilo que está abrangido pelo termo nyon mongs, esta expressão está largamente difundida nas traduções francesas de ensinamentos budistas. Por razões de coerência com os textos mais conhecidos, ela é também utilizada aqui, partindo do princípio que o contexto é suficientemente explícito para não gerar confusão.
(5) Man significa «espírito», e tra «que protege ou liberta»: aquilo que liberta o espírito da confusão e de todos os obscurecimentos. Os mantras são também os ensinamentos que o Oriente preservou no coração dos seres despertos a fim de que eles sejam transmitidos para libertar o espírito. Um mantra é como um código que contém o conjunto dos ensinamentos que respondem às necessidades e ao nível de cada discípulo.
(6) Os termos «fenómenos» e «percepções? Traduzem ambos a expressão tibetana snang ba. De acordo com a filosofia budista, é tudo o que aparece, tanto no mundo exterior de acordo com a realidade convencional como no nosso espírito indirectamente pelas percepções e projecções mentais.
(7) Yogis que atingiram a realização suprema. A tradição conta a história de vinte e quatro yogis da Índia antiga que, fazendo das suas actividades quotidianas o suporte da sua prática, chegaram ao despertar levando uma vida aparentemente vulgar. Alguns deles estão na origem de grandes linhagens espirituais ainda vivas hoje.
(8) Isto pode fazer pensar que o budismo admite a existência de uma alma ou de uma entidade que transmigra. Tal não é o caso. Aquilo que reencontramos numa e noutra vida, não é uma entidade única, imutável, que passará de um corpo a outro, mas uma corrente mental, um continuum de consciência parecida àquela que atravessa os momentos da vida presente, um fluxo ilusório de tendências habituais e de impressões subtis ao qual o espírito ignorante acrescenta o conceito de entidade ou de ego. Notemos que «consciência» tem numerosos sentidos e níveis diferentes que serão evocados no seguimento do texto. Não confundir as oito consciências (ver nota 12), a consciência fundamental (skt. Alaya-vijñana), a consciência desperta (tib. Rig pa), e o princípio consciente (continuum de consciência ou consciência) que se transfere de uma para a outra vida.
(9) Samsara: palavra sânscrita que designa o ciclo de existências onde reinam o sofrimento e a frustração engendradas pela ignorância e as emoções perturbadoras nascidas da ignorância.
(10) Equanimidade: tradução da expressão tibetana btang snyoms, assim definida por Patrul Rinpoché no Le Chemin de la Grande Perfection (Ed. Padmakara, 1987, p. 204): «Equanimidade significa uma parte renunciar (btang) a sentir ódio pelos seus inimigos e um apego apaixonado pelos seus amigos; por outro lado, ter uma atitude igual (snyoms) por todos os seres».
(11) Padmasambhava, o mestre «Nascido-do-Lótus» (também chamado Padmakara), considerado como o segundo Buda. De acordo com aquilo que foi dito pelo Buda Shakyamuni, Padmasambhava surgiu do coração do buda Amitabha sob a forma da sílaba Hrih e manifestou-se sob a aparência de uma criança de oito anos sobre um lótus no meio do lago Dhanakosha no país de Uddiyana. Por convite do rei Thrisong Detsen e do abade Shantarakshita, ele veio ao Tibete no oitavo século, pacificou as forças hostis ao Dharma, construiu o mosteiro de Samye e ensinou os nove veículos, e compreendeu os tantras que o buda Shakyamuni não havia revelado senão rara e somente ao nível vulgar.
(12) As oito consciências são: (1) a consciência primária ou fundamental, amorfa, obscurecida pela ignorância, mas sem ser polarizada para o bem ou o mal; (2 a 6) as consciências respectivamente associadas a cada um dos cinco órgãos dos sentidos; (7) a consciência mental que elabora as percepções sensoriais; e (8) o intelecto imprime emoções que obscurecem.
(13) Estes são os cinco aspectos sob os quais a sabedoria se manifesta quando se realiza o estado de buda: a sabedoria parecida-ao-espelho, a sabedoria da equanimidade, a sabedoria que discerne, a sabedoria que tudo realiza e a sabedoria do espaço absoluto.
(14) De acordo com os ensinamentos, existem quatro tipos de nascimentos; por intermédio de uma matriz, de um ovo, da humidade ou de uma geração miraculosa.
(15) Terra pura: lugar manifestado por um buda ou um grande bodhisattva, graças às virtudes da sua realização. Os seres podem progredir em direcção ao despertar sem jamais recair nos mundos inferiores. Há uma infinidade fora do mundo terrestre, considerado como a terra pura do buda Shakyamuni.
(16) A Grande Perfeição: o nono e o último veículo. Esta doutrina trata da pureza primordial dos fenómenos e da presença natural das qualidades de buda em cada ser. Ela traz o nome de Grande Perfeição para sublinhar que todos os fenómenos estão incluídos nesta perfeição primordial. A linhagem de transmissão da Grande Perfeição chega ao buda primordial Samanthabhadra, continua com Vajrasattva, Garap Dorje, Manjushrimitra, Shri Singha e Padmasambhava, que introduzir este ensinamento no Tibete no século oitavo. Desde esta época e até aos nossos dias, a transmissão da Grande Perfeição perpetuou-se através de uma linhagem ininterrupta de mestres, e por intermédio de tesouros espirituais escondidos por Padmasambhava e redescobertos em diferentes épocas da história por mestres altamente realizados.