domingo, 14 de agosto de 2011
A Hora de Parar
A Hora de Parar
Por Melissa Mathison
O Dalai Lama fala sobre reencarnação, sobre como admirava o comandante Mao na infância e sobre a decisão de abrir mão do cargo de chefe exilado do governo tibetano
PROTETOR DO POVO O Dalai Lama em Washington, D.C., em 8 de julho de 2011
Leia abaixo um trecho da matéria publicada na edição 59 da Rolling Stone Brasil, nas bancas a partir de 9 de agosto
O sol brilha no templo de Tsuglagkhang, no sopé da cordilheira do Himalaia, do lado indiano, e centenas de tibetanos se reúnem no pátio para um banquete. Enquanto monges budistas servem arroz e legumes cozidos, cornetas tocam, e címbalos batem. Celebrações assim são comuns por aqui - os monges costumam alimentar os aldeões como ato de serviço para acumular mérito cármico - mas o ar festivo parece capturar o humor do homem que vive ao lado do templo.
O Dalai Lama, apesar de muitas petições assinadas do fundo do coração por seus constituintes, finalmente teve atendido o desejo de se aposentar oficialmente de suas funções governamentais. Por duas vezes, o Parlamento Tibetano pediu a Sua Santidade que reconsiderasse, mas ele se negou até mesmo a ler a mensagem enviada ou fazer reuniões com legisladores. Ele estava decidido. No dia 29 de maio, os documentos foram assinados e a carta régia tibetana foi emendada.
O ato marca a separação notável e voluntária da Igreja e do Estado: pela primeira vez em mais de 350 anos, o Dalai Lama deixa de ser o líder secular e também espiritual do povo tibetano. Apesar de o governo tibetano em exílio ser amplamente democrático há décadas, o Dalai Lama ainda dava a palavra final em todas as principais decisões políticas no âmbito da diáspora. Ele nomeava representantes estrangeiros, determinava o alcance e o momento das negociações com a China, tinha poder de efetivar ou vetar projetos de lei e podia até dissolver o Parlamento. Agora, com a assinatura dele seu título formal mudou de "Chefe da Nação" para "Protetor e Símbolo do Tibete e do Povo Tibetano". Muitas das responsabilidades políticas vão ficar sobre os ombros de Lobsang Sangay, um estudioso de direito em Harvard de 43 anos que foi eleito em abril para o posto de primeiro-ministro do Tibete.
A China, que desprezou a transferência de poder chamando-a de "truque", recusou-se a participar de uma reunião com Sangay. O governo comunista acredita que a luta pela autonomia tibetana vá morrer com o Dalai Lama; basta esperar que ele se vá. Mas, ao colocar as rédeas do governo nas mãos dos governados, Sua Santidade está apostando na capacidade da democracia de funcionar como bastião eficiente contra a opressão chinesa. Aos 76 anos, ele sabe que não vai estar aqui para sempre para guiar o leme do Estado. Ele acredita que os tibetanos precisam aprender a dirigir o barco por conta própria.
Tenzin Gyatso, [nome religioso. Seu nome de batismo é Lhamo Thondup] o 14º Dalai Lama, filho de um agricultor, nasceu em 1935, em um vilarejo tibetano. De acordo com a tradição antiga, sonhos e visões de lamas elevados e de oráculos acabaram conduzindo um grupo de busca até o menino. Aos 2 anos, ele identificou com sucesso pessoas e objetos de sua vida anterior e foi oficialmente reconhecido como a reencarnação do 13º Dalai Lama. Aos 4, ele adentrou à capital, Lhasa, e foi nomeado líder espiritual de seu povo. Aos 15, tornou-se chefe de Estado. Em 1959, quando as tensões com o exército chinês atingiram o ponto de ebulição, ele fugiu para a Índia, de onde lidera a diáspora tibetana desde então.
Ao fazer um retrospecto de seus 60 anos de liderança, ele tem muito do que se orgulhar. Ele estabeleceu um governo bem-sucedido e estável no exílio e se manteve firme contra o regime brutal. Como o primeiro Dalai Lama a viajar para o Ocidente, ele também apresentou as virtudes da não violência a milhões de pessoas, uma iniciativa de toda a vida que lhe valeu um Prêmio Nobel da Paz. Como líder espiritual do Tibete, ele permanece como a personificação da luta de sua nação.
Eu conheço Sua Santidade desde 1990, quando escrevi Kundun, um filme sobre a infância dele, dirigido por Martin Scorsese. De lá para cá, nós desenvolvemos uma amizade duradoura. Eu continuo a trabalhar como ativista em nome da autonomia tibetana e faço parte da diretoria da ONG International Campaign for Tibet. Todos os dias, rezo pela longa vida de Tenzin Gyatso.
Ao nos encontrarmos no dia 2 de junho, no movimentado templo principal na montanha de McLeod Ganj, na Índia, ele pergunta se ainda parece tão saudável quanto da última vez em que nós nos vimos. Sim, eu respondo a ele - até mais jovem, se é que isso é possível. Mas, completo, seus olhos parecem mais velhos. "Está certo", ele diz. Ele deseja me informar, no entanto, que não precisou aumentar o grau das lentes dos óculos - em parte, porque não usa computador. "Nunca nem tentei", ele diz, e começa a dar suas gargalhadas fervorosas típicas. "Não sei como!"
Vamos começar falando sobre o dia, em 1950, em que você se tornou chefe de governo no Tibete. Você só tinha 15 anos e os chineses tinham invadido seu país.
Foi uma situação muito, muito difícil. Quando as pessoas me pediram para assumir a responsabilidade, minha reação foi: eu quero seguir as tradições do Dalai Lama, que diziam para ser entronado aos 18 anos. A idade de 15 anos é cedo demais. Então, pediram de novo. Chamdo [uma região montanhosa no leste do Tibete] já tinha sido tomada pelos chineses. Havia muita ansiedade. Então eu assumi a responsabilidade. Quando o Exército de Libertação Comunista chegou a Lhasa, meu primeiro ato foi fugir de Lhasa para a fronteira com a Índia. Então eu pensei: mau agouro ou bom auspício? Quase meu primeiro ato depois de assumir a responsabilidade foi fugir de Lhasa! [Risos]
Então, aqui estamos nós, 61 anos depois, e o senhor acaba de se aposentar como chefe de governo. Na verdade, o senhor vem se preparando para essa aposentadoria - a separação entre a Igreja e o Estado - desde criança. Como a semente foi plantada?
Quando eu era adolescente, por volta dos 13 ou 14 anos, morando em Lhasa, eu tinha uma espécie de contato muito íntimo com pessoas comuns. Principalmente, os varredores no palácio de Potala e também em Norbulingka [a residência de verão do Dalai Lama em Lhasa]. Eu sempre brincava com eles e às vezes comia com eles. Eu recebia dos serventes as informações a respeito do que estava realmente acontecendo em Lhasa. Eu sempre ouvia falar das injustiças que as pessoas viviam. Comecei a entender que o nosso sistema - o poder nas mãos de poucas pessoas - é errado.
Pouco depois de assumir o poder, o senhor decidiu que desejava implantar reformas ao antigo sistema?
Em 1952, acho, estabeleci um comitê de reformas. Eu queria dar início a algum tipo de mudança. Mas me deparei com um enorme obstáculo: os representantes do governo chinês queriam reformas de acordo com seus próprios padrões, que já tinham implantado na China propriamente dita. Os chineses achavam que, se a reforma tibetana fosse iniciada pelos tibetanos em si, poderia ser um empecilho para seu próprio método de reformar. Então, ficou difícil.
O senhor viajou para a China em 1954 e viu em primeira-mão o que era a reforma comunista. Era o que tinha em vista para o Tibete?
Eu fui à China como um dos integrantes da delegação tibetana no Congresso da República Popular da China. O Parlamento em Pequim era muito disciplinado! Observei que todos os integrantes mal ousavam fazer uma sugestão. Eles davam opiniões, mas apenas pequenas correções no fraseado [risos]. Ninguém realmente discutia o significado. Então, em 1956, eu tive a oportunidade de ir à Índia. E aqui, também, tive a oportunidade de visitar o Parlamento indiano. No Parlamento indiano, muito barulho. Nenhuma disciplina. Era um sinal claro de completa liberdade de expressão. Os parlamentares indianos adoram criticar o governo. Percebi que esse era o significado da democracia - liberdade de expressão. Eu fiquei muito impressionado com o sistema democrático.
A maior parte das pessoas no mundo está ansiosa para se livrar de seus líderes. Mas os tibetanos relutam muito em permitir que o senhor se aposente. Por quê?
Emocionalmente, espiritualmente, eles ainda têm a mim como referência. Depois que eu anunciei a minha aposentadoria, eles requisitaram que eu desempenhasse minhas responsabilidades como tenho desempenhado, de maneira contínua. Eu não aceitei. Perguntaram se eu pelo menos pensaria em carregar um título, como uma espécie de chefe cerimonial. Um papel cerimonial? Não gosto disso. Ser igual aos britânicos, a rainha deles. Claro que, pessoalmente, eu a admiro muito. Maravilhosa. Mas o sistema? [Risos] Se você tem algum tipo de cargo cerimonial, então precisa fazer alguma coisa! Senão, eu seria apenas uma figura. Alguém escreve um discurso e eu leio? Eu sei a palavra - um fantoche. Só desde o quinto Dalai Lama, há 350 anos, que a instituição assumiu responsabilidade política real. As primeiras encarnações eram apenas líderes espirituais. Eu acredito que o governo de um rei ou de um líder oficial é antiquado. Agora nós precisamos ficar a par com o mundo moderno. Por isso, entreguei a minha autoridade política para um governo eleito. Eu me sinto feliz. Eles carregam responsabilidade completa. Eu só quero ser um líder espiritual puro. Mas, caso os meus serviços se façam necessários, continuo disponível.
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